Esfregar o segundo degrau, por Tolentino Mendonça
Quem se aventurou alguma vez por essa destemida peregrinação interior que é “Um Diário de Preces” (Relógio D’Água, 2014), que a romancista Flannery O’Connor escreveu quando tinha 20 anos, aprendeu a desconfiar das soluções instantâneas no que à experiência de fé diz respeito. É verdade que, numa página do diário, Flannery declara: “Neste momento sou um queijo, faz de mim uma mística, imediatamente.” Mas ela sabe que não se pode agarrar ao passe de mágica do advérbio. De facto, há de voltar a essa prece refazendo-a deste modo: “Quero ser uma mística e sê-lo imediatamente. Apesar disso, querido Deus, indica-me um lugar, por pequeno que seja, e faz com que eu o respeite. Se me estiver destinado ser aquela a quem compete esfregar cada dia o segundo degrau, faz-mo saber, e faz com que eu o esfregue com um coração transbordante de amor.” A norte-americana era uma leitora assídua de Dante. E aí ela aprendeu que, no processo purgatório que nos habilita a entrar pela “porta estreita”, há um prévio percurso por três degraus, todos diferentes. O primeiro deles é branco, de mármore límpido. Nele podemos olhar o nosso rosto como ainda não o havíamos contemplado. O último é uma soleira de diamante, que flameja como uma labareda, e nele está sentado o anjo de Deus. O degrau intermédio, o segundo nesta ordem, é “escuro mais que pez/ de pedra áspera e seca, apresentando/ fissuras de comprido e de través”. Os orantes sabem que, na maior parte do tempo, a oração é essa tarefa repetida, que pode até parecer rasa, inglória e desinteressante, mas que requer de nós uma humilde fidelidade ao trabalho sobre o segundo degrau.
A oração é essa tarefa repetida, que pode até parecer rasa, inglória e desinteressante, mas que requer de nós uma humilde fidelidade ao trabalho sobre o segundo degrau
A iniciação a esse trabalho é o argumento de um dos livros mais amados do cânone bíblico: o Livro dos Salmos. Obra que se pode abordar como texto literário, pois certamente está entre os cimeiros da literatura universal. Numa das suas cartas, São Jerónimo dizia que David (a quem a tradição atribui a autoria dos salmos ou de parte deles) é, com justa razão, “o nosso Simónides, o nosso Píndaro, o nosso Alceu, o nosso Horácio, o nosso Catulo...”. Mas Nietzsche trouxe uma precisão, porventura surpreendente, às palavras de Jerónimo, defendendo que “entre aquilo que sentimos ao ler os salmos e aquilo que experimentamos na leitura de Píndaro e de Petrarca é a mesma diferença que existe entre a pátria e qualquer terra estrangeira”. A verdade é que a posteridade espiritual dos salmos está carregada de surpresas destas. Penso, por exemplo, no seu impacto na cultura portuguesa. O erudito ensaio do jesuíta Mário Martins, “A Bíblia na Literatura Medieval Portuguesa”, mostra como, desde as Cantigas de Amigo, o Saltério tem sido um código da nossa literatura. Entre os contemporâneos, temos múltiplos e distintos casos. Desde a inesquecível forma como Herberto Helder traduziu alguns salmos a este livro comovente e singularíssimo que a Editorial Caminho acaba de publicar, intitulado “Do Livro dos Salmos”, da autoria de Mário Castrim. Autor que teve, como se sabe, uma vida entregue aos jornais, nomeadamente como crítico de televisão, foi presidente da assembleia-geral do Sindicato dos Jornalistas, militante do Partido Comunista e cristão. Não é por acaso que um homem com o percurso de Mário Castrim se abeira dos Salmos e da sua espiritualidade profundamente inscrita na história, com as suas lutas, paixões, demoras. Habitar os salmos, parafraseá-los ou reinventá-los como ele o faz, é ter compreendido que esperar em Deus não nos dispensa em cada hora de esfregar o segundo degrau. Mas desse modo, como promete Castrim a Deus, “hei de fazer ao longo do meu dia/ a casa que será tua morada”.
[SEMANÁRIO#2509 - 27/11/20]