Para não matarmos a alma, por Tolentino Mendonça
O verbo produzir, que se tornou nas nossas sociedades um parâmetro obrigatório de avaliação da atividade humana, é, no fundo, um verbo parcial e pobre para descrever aquilo de que se pretende avizinhar. Produção, produtividade, produtivo, produto podem ser termos úteis para a elaboração estatística ou para a composição do arsenal de gráficos e grelhas com que se tenta capturar a morfologia da vida, mas não tocam, nem de longe, a vida no seu âmago. Há nessas palavras — na verdade, mais apropriadas para a máquina do que para a pessoa —, uma deliberada supressão da complexidade da nossa experiência sobre este mundo, um cinzento camuflado de neutralidade face àquilo que a vida é. Por isso, que esse vocabulário seja hoje triunfante, e sonambulamente disseminado como modelo de compreensão do real, diz muito sobre a redução de sentido que aceitamos viver. Recordo o que escreveu a filósofa Simone Weil, partindo da sua experiência como operária numa fábrica, onde sentiu na pele o que significa ver-se reduzido a peça anónima da cadeia de produção: “Vi a consciência da minha dignidade e o respeito por mim mesma serem sistematicamente estilhaçados aos golpes de uma construção brutal e quotidiana. Custa-me confessá-lo, mas para meter-se diante de uma máquina, é necessário matar a própria alma oito horas por dia.” Seguramente, não se trata apenas de um caso singular, mas de um sintoma epocal. A aceleração extrema da vida e a sua desumanização, o crescimento de fenómenos como a industrialização, a computadorização, a conceção global do mundo como mercado (e não mais do que isso), conduziram-nos a este estranho estatuto de vivos-mortos, de gente que está viva mas amputada na sua humanidade.
O presépio desautoriza o conformismo com que lidamos com a amputação da nossa própria existência e da dos nossos semelhantes
Penso que é disto — e não de enfeites e berloques — que nos fala o Natal. De facto, um dos textos inesquecíveis do cânone cristão, a Primeira Carta de João, afirma o seguinte: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos palparam acerca do Verbo da Vida. Pois a Vida se manifestou, nós a vimos e dela damos testemunho” (1 João 1,1-2). O presépio é uma representação radical da vida, em contraciclo com a maior parte do nosso presente, e não só porque a vida é colocada no centro em vez de ser desclassificada e remetida para um lugar secundaríssimo, mas também porque ela se escreve com maiúscula. O presépio desautoriza o conformismo com que lidamos com a amputação da nossa própria existência e da dos nossos semelhantes. Obriga-nos a querer mais do que isto. Revela o ser humano a si mesmo e fá-lo descobrir a sua vocação sublime. Quem o diz é o Concílio Vaticano II, que acrescenta: “Na realidade, só no mistério do Verbo Encarnado, se esclarece verdadeiramente o mistério do homem” (Gaudium et spes, 22).
Alguns dicionários colocam como sinónimos de produzir os verbos gerar e criar, o que é um equívoco. Não se diz “produzir um filho”, mas sim gerar, pois um filho é fruto do amor. Não se produz um abraço, nem a profusão de luz de um sorriso, nem um silêncio, nem a escrita sem letras de um pranto, nem uma amizade, nem o cuidado solidário, nem aquela arquitetura íntima de relações que é o miolo de uma casa; não se produz a indagação sem fim e o espanto sobre o qual a vida constantemente nos debruça, nem o desejo e o encontro que o excede, nem o repouso de certos instantes e a dança para a qual ele nos sonha, nem o convite ou a chegada à festa. Não se produz aquilo que o presépio significa. O Evangelho de João explica-o antes assim: “Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o Seu próprio Filho” (Jo 3,16).