O património da dúvida, por Tolentino Mendonça
A dúvida é um extraordinário património humano partilhado por nós todos. A etimologia latina da palavra dúbium reconduz-nos ao termo “duo”, dois. E também no sânscrito ou no grego a semântica é a mesma. Podemos dizer que existe a dúvida, porque existem duas possibilidades de interpretação, por vezes dolorosamente contrárias entre si. Existe o sim e o não, a noite e o dia, o claro e o escuro, o nítido e o fosco, o verso e o reverso. E essa dualidade costura de modo universal a humanidade de que somos feitos. Por um lado, constatamos em nós a aspiração a uma unidade, a uma empatia que nos avizinhe do que amamos de modo irrevogável, que nos permita realizar uma experiência de inteireza e comunhão. Por outro, percebemos que a nossa existência se debate continuamente com dualidades, dentro e fora de si. Pode ser que a sentença do Livro do Eclesiastes esteja certa: “Deus criou-nos simples e diretos, mas nós complicamos tudo” (Ecl 7:29). O que constatamos, porém, é que nos descobrimos e maturamos numa viagem que compreende incertezas, ambivalências, ambiguidades, hiatos, distâncias e interrogações. E que nos obriga a todos a aprofundar o que seja a dúvida.
A filosofia, a ciência e o pensamento em geral devem uma parte significativa do seu desenvolvimento à dúvida, pois ela é um dos motores de busca internos mais ancestrais que o ser humano conhece. O teólogo e filósofo medieval Pedro Abelardo (séc. XII) dizia: “Duvidando chegamos à necessidade da procura, e procurando percebemos a verdade.” Quer dizer, a dúvida não é um ponto de chegada no qual fixamos convicção e morada, mas é sim um instrumental desafio ao nomadismo do espírito, à realização de um percurso indagativo, uma tentativa de aproximação à verdade que, da nossa parte, está sempre em curso e nunca está completa.
A dúvida não é um ponto de chegada no qual fixamos convicção e morada, mas é sim um instrumental desafio ao nomadismo do espírito
Na sua lição inaugural como professor no Collège de France, Roland Barthes recordou que “há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: a isso se chama pesquisar”. “O que não se sabe” é o território para onde a dúvida — mas, do mesmo modo, também a fé, também a sabedoria ou o amor — nos reenviam, por uma operação de descolagem que não está longe, por exemplo, daquilo que no léxico do cristianismo se chama quenósis, essa espécie de subversão que acontece pela experiência voluntária do esvaziamento. Como está escrito na Carta de São Paulo aos Filipenses, Cristo sendo de condição divina esvaziou-se da forma de Deus para se tornar semelhante aos homens, e não só dos homens de bem, mas para assumir na carne a humanidade desprezada dos últimos (Fil 2: 1-11). A dúvida, à sua maneira, é também um precioso “operador quenótico” com o qual nos precisamos reconciliar, lendo-a não apenas como demolição, mas como relançamento do caminho.
É importante sublinhar que o património da dúvida tem sido enriquecido tanto pelos não-crentes como pelos crentes. Não me esqueço da maneira franca e iluminante como o poeta italiano Tonino Guerra, de quem tive a felicidade de ser amigo, se definia “um não-crente com dúvidas”. Nem daquilo que escreveu o monge trapista Thomas Merton: “O crente que não experimentou jamais a dúvida não se pode dizer um crente. Porque a fé não é propriamente a remoção da dúvida... A dúvida só se vence atravessando-a.” Na verdade, a dúvida não é a linha divisória ou a fronteira que separa a descrença da crença. Muitas vezes é um hífen, o traço de união, a zona enigmática de contacto que nos revela a todos de mãos vazias diante da vastidão do mistério. Embora, é claro, a interpretação desse vazio possa ser muito diferente.
[SEMANÁRIO#2516 - 15/1/21]