«O que é um pai?», por Tolentino Mendonça

Razões para Acreditar 21 março 2021  •  Tempo de Leitura: 5

Sobre a pergunta “o que é um pai?” há três aspetos que a psicologia e as ciências humanas ajudaram a modernidade a consolidar como adquirido. Em primeiro lugar a proeminência que tem o pai na constituição da realidade psíquica de cada pessoa. Não podemos ser sem pai, pois aquilo que essa figura transmite (na função de pai real, simbólico e imaginário) é essencial para a fundação do sujeito. Em segundo lugar, enquanto que a mãe é representada pela evidência da carnalidade donde provimos, o pai assoma primariamente no interior do filho como uma interrogação, uma questão por explicar. O célebre adágio jurídico Mater semper certa, pater nunquam tem, antes de tudo, uma conotação existencial que cada um deve afrontar. E esse é um decisivo trabalho interno. Em terceiro lugar, está o facto de constituir uma verdade universal a afirmação de Jesus: “Ninguém conhece o Pai a não ser o Filho” (Mt 11:27). É isso que teoriza Jacques Lacan quando recorda que “é o jogo jogado com o pai” que permite aceder à sua (e à nossa) compreensão. Quer dizer, é necessário aprofundar a dádiva que o pai representa para passar da exclusividade do laço materno, fundado na fusão e no desejo, para a complementaridade do laço paterno que nos introduz na experiência da diferenciação e na objetividade da lei.

 

Obsidiados pelo transe do consumo desejamos tanto que já não somos capazes de desejar. O desejo precisa da iluminação que é trazida pela lei

 

De que “o jogo jogado com o pai” é complexo e, por vezes, dilemático dá amplamente conta a literatura do século XX, situando-se entre a vontade de rutura e o desejo de reconciliação. Bastaria pensar na contundência da carta que Kafka escreve ao pai: “Queridíssimo pai,

 

Perguntaste-me, há pouco tempo, por que razão afirmo ter medo de ti. Como de costume, não soube responder; por um lado, precisamente pelo medo que tenho de ti, por outro, porque, na base deste medo, existem demasiados pormenores para que possa exprimi-los oralmente... E se neste momento procuro responder-te por escrito será de forma bastante incompleta porque, também por escrito, o medo e as suas consequências me tolhem diante de ti.” Ou, em linha divergente, na confissão que o poeta Umberto Saba faz de que possuía uma imagem errada do pai até ter percebido duas coisas: a necessidade de se reconciliar com a fragilidade do pai (“ele era um miúdo”) e de lhe fazer justiça como transmissor da vida (“o dom que recebi foi dele que recebi”). Quando se fala de um necessário trabalho interno com a figura paterna também é disto que se fala: a capacidade de aceitação dos limites, o reconhecimento de um dom absoluto mesmo que transmitido de forma débil, a experiência de perdão, o reencontro e a prevalência da gratidão.

 

A cultura contemporânea não facilita, em nenhum modo, este reencontro, pois passou de uma demolição sistemática a uma estratégica (e eficaz) operação de evaporação do pai. Hoje, não existe propriamente uma rebelião contra a figura do pai, como em outras épocas do passado. A estratégia é antes a de agir como se o pai, e o que ele representa, tivessem sido removidos. Essa é, em grande medida, como bem o explica o psicanalista Massimo Recalcati, o artifício forjado pelas nossas sociedades quando impõem o consumo como padrão de felicidade. O desejo torna-se uma espécie de mantra omnipresente, que a publicidade repete sem cessar para alimentar o circuito insone do consumo. Mas o seu efeito exasperado é paradoxal: obsidiados pelo transe do consumo desejamos tanto que já não somos capazes de desejar. De facto, o desejo precisa da iluminação que é trazida pela lei. A conclusão, também aí, é que não podemos viver plenamente sem integrar a relação com o pai e o que ele significa.

 

[SEMANÁRIO#2525 - 19/3/21]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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