Sobre o bom uso dos estudos, por Tolentino Mendonça
Existe um texto de Simone Weil que frequento há anos (para ser honesto, deveria dizer que luto com ele há anos), que me comove intensamente de cada vez que o leio, e que, confesso, me continua a dar que fazer. Não tenho com ele uma relação propriamente apaziguada. Julgo, contudo, que os grandes textos que encontramos na vida não têm por função tranquilizar-nos. Como explicava a própria Simone Weil, “o sofrimento não tem a ver com a alegria; mas a alegria tem a ver com o sofrimento”. Isto é: a alegria não é um estado de isenção, mas requer de nós uma exposição interminável ao adestramento, à paixão e à prova.
O texto tem um título extenso e culturalmente contracorrente: “Reflexões sobre o bom uso dos estudos escolares em vista do Amor a Deus”. Falar assim do estudo é reconhecer que este não se trata simplesmente de uma técnica, como se fosse um território neutro do ponto de vista emocional ou espiritual. E colocar-lhe ao lado o adjetivo “escolar” não significa cristalizá-lo em função de uma determinada utilidade, mas implica sim remontar àquilo que a palavra grega scholé indicava: o tempo que o cidadão dedicava a si mesmo e à sua formação (à sua paideia), que deveria ser completa e integral, expressando-se como enkyklios, isto é, circular no sentido da abrangência e universal na ordem do objeto.
Simone Weil não pretendeu especular sobre as melhores vias para o sucesso pedagógico. Desse ponto de vista, o material que fornece é escasso, para não dizer dececionante. Para ela, o que se joga no domínio da aprendizagem e do estudo é simplesmente isto: compreender que a própria vocação outra coisa não é do que a orientação completa da vida para a verdade, e que existir só ganha sentido na obediência a essa vocação, num desejo ardente pela verdade e num interminável esforço de atenção que a aproximação à verdade supõe. Só quando tal está salvaguardado, como defendia Simone, os estudos escolares se tornam um desses campos que encerram uma pérola. Por isso, argumenta deste modo: “Se procuramos com verdadeira atenção a solução de um problema de geometria e, ao fim de uma hora, não estamos mais avançados do que no começo, avançámos, todavia — garante a filósofa —, durante cada minuto dessa hora, numa outra dimensão mais misteriosa. Sem que o sintamos, sem que o saibamos, este esforço aparentemente estéril e sem fruto introduziu mais luz na alma.”
A vocação outra coisa não é do que a orientação completa da vida para a verdade
É curioso que, por exemplo, a sua primeira grande crise existencial tenha ocorrido na adolescência, aos 14 anos de idade. O seu irmão André Weil, um extraordinário talento matemático, apenas dois anos mais velho do que ela, fora admitido com estatuto excecional no departamento científico da École Normale Supérieure. A comparação com a inteligência fulgurante do irmão era inevitável e Simone afunda-se num estado de prostração, que não nascia tanto da inveja quanto do medo de que, sendo menos dotada intelectualmente, ficasse, por isso, excluída da procura da verdade. E ela preferia morrer a considerar-se capturada por semelhante privação. De facto, julgava, nessa época, que só as pessoas muito inteligentes estavam em condições de aceder à verdade. A experiência de terrível sofrimento, como ocorrerá diversas vezes ao longo do seu percurso, será a travessia para um entendimento novo que a autora descreve na primeira pessoa na sua “Autobiografia espiritual”: “Após meses de trevas interiores, improvisamente e para sempre, tive a certeza de que qualquer ser humano, mesmo se as suas faculdades naturais são quase nulas, penetra no reino da verdade reservado ao génio, se deseja com todas as forças a verdade e aplica-se na atenção para atingi-la... A certeza por mim alcançada é que quando se deseja um pouco de pão não se recebem pedras.”
[SEMANÁRIO#2533 - 14/5/21]