Pentecostes, por Tolentino Mendonça
É duro e belo o que vem descrito pelo Evangelho de João a propósito da cena do Pentecostes. Os apóstolos estão acossados, de portas fechadas, afundados na própria incerteza, por medo do que lhes possa acontecer. E o Ressuscitado aparece, atravessando o medo deles, perfurando esse espesso medo para lhes dizer: “A paz esteja convosco.” Nesse momento, mostra-lhes as feridas provocadas pela cruz e sopra sobre eles. Este sopro deve ser lido como uma citação do momento da criação, quando Deus amassa o homem da fadiga do barro, da fragilidade da terra, e lhe insufla as narinas para que o homem se possa tornar um vivente sobre este mundo, com tudo o que isso significa. Sem cair em dicotomias fáceis, cada um de nós repete essa experiência primordial. Sentimos que há uma materialidade na vida, no corpo que somos, na forma da nossa existência sobre este mundo. Mas, ao mesmo tempo, compreendemos que não somos só isso: somos também um sopro vital, um hálito, um mistério que excede as explicações fornecidas pela pura matéria. Somos também espírito. E é esta associação de planos que faz o milagre espantoso que é a vida. Ora, o sopro vital não é apenas o oxigénio de que precisamos para existir neste instante. O sopro vital é o Espírito Santo.
No relato evangélico, Jesus toma a fadiga da nossa existência, a nossa interminável fragilidade e investe nela um novo motor de sentido: o sopro do Espírito Santo. E isso é duro e belo, dizia. Belo, porque se trata de um verdadeiro renascimento. Duro, por que o Espírito Santo é concedido aos discípulos numa estação particularmente sofrida do seu caminho. É a mulheres e homens feridos por lutos, sofrimentos, insuficiências e dúvidas que a plenitude do Espírito é dada. De facto, Jesus não suspende neles a vulnerabilidade, a precariedade ou o medo. Potencia, sim, uma capacidade de entender e de viver tudo de outra forma. A grande transformação do Pentecostes é, assim, a oferta de um surpreendente horizonte de compreensão, uma abertura do olhar, uma reviravolta, uma nova chave de interpretação de nós mesmos e da história. Sem o Espírito Santo vemo-nos apenas pó, apenas barro, somos apenas o que se vê daqui, o que morre aqui, todos os dias, a todas as horas. É o Espírito que nos torna maiores do que somos.
O Espírito Santo, prometido por Jesus, exprime-se numa linguagem universal, para a qual não há os habituais bloqueios de tradução que tanto nos tolhem
É interessante, por exemplo, que o Livro dos Atos dos Apóstolos relate o Pentecostes como um inédito acontecimento hermenêutico: cada um se expressa na sua própria língua, mas todos se descobrem capazes de se entender na diversidade. O Espírito Santo, prometido por Jesus, exprime-se numa linguagem universal, para a qual não há os habituais bloqueios de tradução que tanto nos tolhem. Faz-nos falar a linguagem do amor e da compaixão; a linguagem da alegria e da fortaleza; a linguagem da visita, do cuidado e da dádiva.
O Espírito é a expressão de Deus, o seu alfabeto. O Espírito Santo é essa divina criatividade em ato que nos estimula a sermos originais. E que, ao mesmo tempo, conspira para, na nossa diferença, na nossa singularidade irredutível consigamos criar laços de fraternidade e de comunhão. Por isso, cada crente é uma consequência do Espírito Santo, um endereço e uma criação sua. Por isso, o dia de Pentecostes não foi apenas aquele dia concreto em que o Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos, reunidos no cenáculo. Cada dia da nossa vida é um dia de Pentecostes. Em cada dia, o Espírito Santo vem até nós como defensor e não permite que a sombra, a violência ou o temor se sobreponham à esperança, mesmo quando esta nos parece frágil.