A casca e a pérola, por Tolentino Mendonça

Razões para Acreditar 31 agosto 2021  •  Tempo de Leitura: 5

Há que dizer que as estações difíceis se podem tornar fecundas, como as crises se iluminam quando fazemos delas oportunidades. A história da concha e da pérola expressa-o bem. A formação da pérola acontece como um mecanismo de defesa da concha a um invasor, que pode ser desde um parasita, a um fragmento invisível de coral ou a um grão de areia. As conchas perlíferas são aquelas que sofreram uma turbulência. São as conchas feridas. Mas o paciente processo de trabalho interno que se segue — uma pérola leva em média três anos a constituir-se — torna a concha preciosa e única. Também connosco sucede algo semelhante. Como diria o poeta brasileiro Manoel de Barros, a vida é “cheia de casca e de pérola”. As feridas não desvalorizam a vida, antes a maturam, ampliam e aprofundam. Talvez num primeiro momento não estejamos preparados para o reconhecer e prevaleça, sobretudo, a reação ao inesperado da dor ou a urgência de nos protegermos do que parece somente uma ameaça. Na verdade, é sempre um caminho que nos conduz de um lugar a outro, fora e dentro de nós. Um caminho que não vemos logo, de cuja existência ou proveito é fácil descrer. Um caminho que quando nos é apresentado parece, inclusive, abstrato e não percorrível. Um caminho demasiado longo, quando a pressão do que sentimos nos faz esbracejar por uma solução rápida que venha em nosso socorro. Porém, quem aceitou o desafio de percorrer os caminhos da sua reconstrução interior sabe que não é assim.

 

A perceção de que tudo é dom ajuda-nos a vencer a desconfiança em relação à existência e a olhá-la na sua inteireza

 

Esse caminho é feito de etapas que podem receber denominações diferentes, mas, se quisermos, se reconduzem a três (e representam, na verdade, mais tomadas de consciência do que sequências temporais propriamente ditas). Em algum momento devemos rever a nossa ideia sobre a fragilidade, aquela que nos pertence e a dos outros. A fragilidade é a língua falada por toda a criação. Ignorar essa língua é não só renunciar à possibilidade de tocar quotidianamente a vida nas suas minúsculas declinações, de a abraçar na sua forma real, mas é arriscar também não chegar a ouvir o que de mais belo ela tinha para nos dizer. A fragilidade não é um acidente, é uma linguagem comum, uma condição. Tomar consciência disso ensina-nos a julgar menos, a integrar mais harmoniosamente, a cuidar e a contemplar melhor. Outra etapa fundamental é a compreensão de que tudo é dom. A terra onde pousamos os pés e o ar que respiramos; a chuva que parece abreviar os dias ou o sol que os alonga; o silêncio e a palavra; a companhia e a solidão; o enigma e a procura; o princípio e o fim. Como se diz num velho romance de Georges Bernanos, “Que importa? Tudo é Graça.” A perceção de que tudo é dom ajuda-nos a vencer a desconfiança em relação à existência e a olhá-la na sua inteireza, em vez de a reduzirmos a um inconclusivo jogo de opostos. Creio que é desse modo que apreendemos — e é a terceira etapa — a potencialidade generativa do que nos cabe viver. É que não nos custa apenas o pensamento da morte, a que tentamos escapar e mascarar o tempo tudo. Não nos desorienta somente o reconhecimento da transitoriedade que faz de nós viajantes e arrendatários mais do que donos. Também nos custa admitir — e fazê-lo com liberdade do fundo da alma — que o verbo nascer seja um verbo ainda para nós, um verbo a ser conjugado a cada instante do nosso itinerário. Preferíamos considerar essa tarefa arrumada e, contudo, é interminável, inacabada, inescusável a ação de nascer. Mas há como que um sobressalto de revitalização, quando aceitamos o incessante desafio a nascer.

 

[SEMANÁRIO#2537 - 11/6/21]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

Subscrever Newsletter

Receba os artigos no seu e-mail