Nós e os outros, por Tolentino Mendonça

Razões para Acreditar 11 outubro 2021  •  Tempo de Leitura: 5

Olhando para trás, aquela conferência que o sociólogo Zygmunt Bauman pronunciou em Assis, em 2016, tornou-se uma espécie de legado seu ao futuro. Nessa ocasião, ele que tinha então 91 anos de idade, propôs-se refletir sobre o estado da humanidade fazendo a história do recurso ao pronome “nós”. Recordo-me de ouvi-lo dizer que esta palavra decisiva começou o seu percurso da forma mais restritiva, pois os grupos humanos protegiam a sua identidade fechando-se em agregados minúsculos. Por exemplo, o primeiro “nós” da história humana não ultrapassaria o reduzido círculo de uma centena de pessoas. Além dessa realidade, os primeiros humanos não conseguiam dizer “nós”. A humanidade era então composta por bandos de caçadores e recoletores que podiam mover-se conjuntamente e assegurar a alimentação do próprio grupo. O “nós” terminava abruptamente nessas fronteiras. Tudo o resto era “outro”. E o outro era olhado como inimigo.

 

Com o tempo, o número daqueles que cabiam dentro do “nós” foi crescendo e assim se chegou à subsequente noção de tribo e de comunidade, de nação e de império. Do estritamente local passava-se ao global. Bauman para descrever a mecânica da história insistia em dois princípios: o primeiro é que a construção da civilização (tanto no passado, como no presente) ocorreu sempre no balanço entre exclusão e inclusão; a segunda, é que a civilização avançou apenas quando conseguiu alargar as fronteiras da inclusão e fazer regredir a prática da exclusão. Por isso, ele afirmava que o nosso futuro depende da capacidade de expandir o pronome “nós” e de reduzir o espaço dado ao pronome “eles”, coisa que só acontecerá se soubermos erguer uma sociedade mais empática, humana e dialógica.

 

Não tenhamos dúvidas: a experiência da pandemia só nos servirá como alavanca se ativar mecanismos de construção do “nós”, tornando-nos a todos co-responsáveis por uma política da esperança

 

Num dos escritos de Wittgenstein há uma crua metáfora que infelizmente arrisca tornar-se emblemática da nossa contemporaneidade. Diz o filósofo que nos assemelhamos a um homem que olha o mundo através dos vidros foscos de uma janela fechada. Vemos a sombra dos que passam no exterior, mas não compreendemos os seus estranhos movimentos. Na verdade, estando protegidos em casa, não nos damos conta que rebentou uma tempestade e que aqueles que vemos do outro lado só com dificuldade se mantêm de pé. O mundo dividido entre “nós” e “eles” é um mundo assente numa visão de vidros foscos, caindo em tantas deformações. Sabemos como a insistência na contraposição dualista favorece apenas a hostilidade e o medo, em vez de incentivar a hospitalidade, o encontro, a perceção do bem comum. Não tenhamos dúvidas: a experiência da pandemia só nos servirá como alavanca se ativar mecanismos de construção do “nós”, tornando-nos a todos co-responsáveis por uma política da esperança. Em vez de dizermos “eles”, deveríamos ser mais capazes de dizer “nós”. Falando dos pobres, dos excluídos da prosperidade económica, da multidão daqueles que o mercado de trabalho condena à precariedade, dos jovens a quem não se oferece uma perspetiva de amanhã, dos idosos considerados pelas nossas sociedades como um peso deveríamos ter a capacidade de dizer “nós”. Falando daqueles que não estão em igualdade de oportunidades ou são apressadamente remetidos para o equívoco estatuto de minoria deveríamos ser capazes de dizer “nós”. Falando dos migrantes e dos refugiados, deveríamos ser capazes de dizer “nós”, alicerçando-nos no reconhecimento de uma condição universal. Naquela sua conferência/testamento, Bauman recordava que ainda não encontramos os instrumentos para implementar o “nós”. Nesse sentido, creio, uma tarefa urgente para esta estação que vivemos é aprofundar o significado dessa palavra.

 

[SEMANÁRIO#2554 - 9/10/21]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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