Advento, por Tolentino Mendonça
Talvez, para a maior parte de nós, o Advento seja apenas um marco cronológico que oficializa os preparativos vários para a festa do Natal. Talvez o vejamos apenas como uma espécie de contador decrescente, sem que consigamos perspetivar o seu conteúdo ou que impacto efetivo poderá ter em nós. E, contudo, o Advento é uma entrada decisiva não só para colher o sentido da celebração do Natal, mas para olhar para a inteireza da nossa própria existência. Mais do que supomos somos figuras do Advento, habitamos o seu território e recebemos dele iluminação para as perguntas que transportamos no tempo.
O termo “advento” provém do latim e significa “vinda”. Na gramática cristã esta vinda é o adventus domini, a vinda do Senhor, acontecimento que configura a vida do mundo como abertura e expectativa. Em Jesus, Deus torna-se humano para que, desse modo, todo o humano se torne capaz de Deus. O mistério que celebramos em cada Natal não é simplesmente um sim pontual de Deus à história dos homens, mas é uma confirmação permanente e irrevogável. Deus entra em contacto com a nossa Humanidade, torna-se incessantemente “aquele que vem”, deixa-se conhecer como “Deus connosco”. Nesse sentido, o advento é a tomada de consciência desta expectativa da vinda de Deus que atravessa a nossa existência a todo instante. E a fé não é tanto a disponibilidade para crer no extraordinário, quanto a sóbria e vigilante convicção de que a eternidade de Deus pulsa no nosso tempo pequeno, precário e mortal. No nosso tempo humano. Deus veio e vem a cada momento. Como escreve Walter Benjamin, nas suas teses sobre o conceito de história, há possíveis não codificados e existe uma história invisível que reemerge do seu fundo subterrâneo e nos faz compreender que, na sua intensidade descontínua, cada fração de tempo tem uma natureza messiânica. E mais: este exato segundo é a pequena porta pela qual pode entrar o Messias. O advento inscreve-nos aí, expectantes, esperançosos, sedentos.
Em Jesus, Deus torna-se humano para que, desse modo, todo o humano se torne capaz de Deus. O mistério que celebramos em cada Natal não é simplesmente um sim pontual de Deus à história dos homens
Recordo aquilo que o teólogo Karl Rahner dizia ser o duplo e esclarecedor impacto do Advento em nós: o primeiro é o sublinhar da nossa condição de precursores; o segundo é o redimensionar surpreendente da nossa visão habitual da vida. De facto, não somos todos, à maneira de João Batista, precursores? Não somos os detentores atuais de uma experiência destinada a ser metamorfoseada e ultrapassada? Os pais são, por exemplo, precursores para os filhos, as gerações mais velhas para as mais novas, a ciência que construímos hoje para a ciência que se formulará em seguida. Mas não apenas nesse sentido somos precursores. O Advento torna-nos precursores porque nos incita a habitarmos criativa e corajosamente a fronteira de um futuro maior do que nós próprios. Porque nos desafia a servir não apenas este presente estabelecido (este presente bloqueado, prisioneiro de tantos impossíveis declarados), mas a antecipar o futuro, ligando-nos desde já a ele, aceitando viver na sua tensão, comprometendo-nos como mediadores credíveis desse horizonte onde cintila a promessa.
E, do mesmo modo, o Advento motiva-nos a compreender o tempo corrente, na sua cinzenta e férrea monotonia, na sua soma de momentos indistintos, na sua extenuante construção como epifania. No seu anónimo e minúsculo formato, naquela que parece ser simplesmente a monocórdica escrita do quotidiano, emerge uma possibilidade radical de rutura: o nascimento de Deus e o nosso. Não, não é de fora que a vida se ilumina. É por dentro de nós que podemos perceber o mistério que ela é. A vida como advento.
[SEMANÁRIO#2562 - 4/12/21]