Aquilo que nos salva

Razões para Acreditar 24 janeiro 2022  •  Tempo de Leitura: 5

Uma pergunta inescusável que nos acompanha neste tempo aberto pela pandemia é “como se sobrevive ao mal”. E com esta pergunta não estou imediatamente a pensar na sobrevivência física, mesmo se os números da mortalidade associados à covid-19 sejam impressionantes (mais de 5 milhões e meio de mortos, segundo as estatísticas da John Hopkins University & Medicine) e todos os dias, sem interrupção, se continue a morrer às mãos da pandemia. Estou a pensar, sim, naquela outra forma de sobrevivência com a qual nos confrontamos quando, sob o impacto de um sofrimento imprevisto, de um obstáculo que emerge ou de uma prova para a qual não estávamos preparados, a nossa experiência habitual do mundo se tem de redimensionar. Em momentos como esse, somos chamados a ativar ou a redescobrir os recursos que possuímos.

 

Onde há morte, impõe-se a interrogação sobre o ressurgir. Esta interrogação é universal e sai-nos dramaticamente ao encontro quando menos esperamos. Não há existência alguma sobre este mundo que não a sinta, em algum momento do seu percurso, como tarefa inescapável.

 

Porquê falar de recursos? A etimologia latina do termo “recurso" está associada ao verbo resurgěre, ressurgir. Onde há morte, impõe-se a interrogação sobre o ressurgir. Esta interrogação é universal e sai-nos dramaticamente ao encontro quando menos esperamos. Não há existência alguma sobre este mundo que não a sinta, em algum momento do seu percurso, como tarefa inescapável. Por isso, nos momentos de crise, nas transições dilemáticas que ciclicamente a História desdobra, na experiência do trauma e do luto, nos abalos sísmicos das certezas que pareciam regular a morfologia da vida somos chamados a contactar de novo, e porventura mais intensamente, com os nossos recursos internos, pois eles constituem instrumentos primários de socorro, pontos de apoio, alavancas preciosas para operacionalizar a esperança e plasmar o que pode ser o ressurgir.

 

É interessante constatar como do campo da psiquiatria e da psicoterapia contemporâneas chega um endorsement que valoriza o papel destes recursos. Veja-se, por exemplo, o que escreve Boris Cyrulnik, psiquiatra e psicanalista francês, que traz aos próprios ombros o martírio dos seus pais levado a cabo pela máquina de morte dos nazis, quando tinha ele sete anos. Numa entrevista realizada já em contexto de pandemia ("XL Semanal”, 21-04-2020) ele recordava duas coisas fundamentais: a primeira, é que os traumas fazem parte da vida do ser humano e para fazer com que essa agressão não fique a bloquear para sempre a vítima é decisivo reforçar os seus recursos interiores. A segunda, e que me parece também da maior atualidade, é a que lembra que após cada catástrofe desponta normalmente uma revolução cultural. A vida organiza-se para ressurgir após um desastre: uma outra maneira de ver o mundo deve principiar. De facto, a pandemia coloca-nos perante um novo patamar da História. Não podemos pensar que voltaremos ao mundo de ontem, e que a situação se resolverá simplesmente com uns ajustes no sistema. Não é, portanto, pequena a tarefa que geracionalmente nos cabe, esta de protagonizar uma mudança de época, com tudo o que isso significa. Vem-me à memória a corajosa reflexão que Simone Weil realizou sobre a reconstrução material e espiritual da Europa, nos primeiros meses de 1943, quando se começa a perspetivar a derrota de Hitler. Para a filósofa era evidente que não seria suficiente a vitória militar para garantir um efetivo recomeço, mas impunha-se um repensamento global sobre o que acontecera. A derrota só se torna vitória se ela nos abrir a um novo enraizamento, a uma ampla mudança civilizacional. Mais do que nunca, também o nosso presente se vê convocado para um repensamento. A pandemia gere-se numa frente sanitária. Mas não de forma exclusiva. Seria um trágico engano não ver que o debate sobre aquilo que nos cura só se resolve na abertura ao debate sobre aquilo que nos salva.

 

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

Subscrever Newsletter

Receba os artigos no seu e-mail