Aquilo que nos salva
Uma pergunta inescusável que nos acompanha neste tempo aberto pela pandemia é “como se sobrevive ao mal”. E com esta pergunta não estou imediatamente a pensar na sobrevivência física, mesmo se os números da mortalidade associados à covid-19 sejam impressionantes (mais de 5 milhões e meio de mortos, segundo as estatísticas da John Hopkins University & Medicine) e todos os dias, sem interrupção, se continue a morrer às mãos da pandemia. Estou a pensar, sim, naquela outra forma de sobrevivência com a qual nos confrontamos quando, sob o impacto de um sofrimento imprevisto, de um obstáculo que emerge ou de uma prova para a qual não estávamos preparados, a nossa experiência habitual do mundo se tem de redimensionar. Em momentos como esse, somos chamados a ativar ou a redescobrir os recursos que possuímos.
Onde há morte, impõe-se a interrogação sobre o ressurgir. Esta interrogação é universal e sai-nos dramaticamente ao encontro quando menos esperamos. Não há existência alguma sobre este mundo que não a sinta, em algum momento do seu percurso, como tarefa inescapável.
Porquê falar de recursos? A etimologia latina do termo “recurso" está associada ao verbo resurgěre, ressurgir. Onde há morte, impõe-se a interrogação sobre o ressurgir. Esta interrogação é universal e sai-nos dramaticamente ao encontro quando menos esperamos. Não há existência alguma sobre este mundo que não a sinta, em algum momento do seu percurso, como tarefa inescapável. Por isso, nos momentos de crise, nas transições dilemáticas que ciclicamente a História desdobra, na experiência do trauma e do luto, nos abalos sísmicos das certezas que pareciam regular a morfologia da vida somos chamados a contactar de novo, e porventura mais intensamente, com os nossos recursos internos, pois eles constituem instrumentos primários de socorro, pontos de apoio, alavancas preciosas para operacionalizar a esperança e plasmar o que pode ser o ressurgir.
É interessante constatar como do campo da psiquiatria e da psicoterapia contemporâneas chega um endorsement que valoriza o papel destes recursos. Veja-se, por exemplo, o que escreve Boris Cyrulnik, psiquiatra e psicanalista francês, que traz aos próprios ombros o martírio dos seus pais levado a cabo pela máquina de morte dos nazis, quando tinha ele sete anos. Numa entrevista realizada já em contexto de pandemia ("XL Semanal”, 21-04-2020) ele recordava duas coisas fundamentais: a primeira, é que os traumas fazem parte da vida do ser humano e para fazer com que essa agressão não fique a bloquear para sempre a vítima é decisivo reforçar os seus recursos interiores. A segunda, e que me parece também da maior atualidade, é a que lembra que após cada catástrofe desponta normalmente uma revolução cultural. A vida organiza-se para ressurgir após um desastre: uma outra maneira de ver o mundo deve principiar. De facto, a pandemia coloca-nos perante um novo patamar da História. Não podemos pensar que voltaremos ao mundo de ontem, e que a situação se resolverá simplesmente com uns ajustes no sistema. Não é, portanto, pequena a tarefa que geracionalmente nos cabe, esta de protagonizar uma mudança de época, com tudo o que isso significa. Vem-me à memória a corajosa reflexão que Simone Weil realizou sobre a reconstrução material e espiritual da Europa, nos primeiros meses de 1943, quando se começa a perspetivar a derrota de Hitler. Para a filósofa era evidente que não seria suficiente a vitória militar para garantir um efetivo recomeço, mas impunha-se um repensamento global sobre o que acontecera. A derrota só se torna vitória se ela nos abrir a um novo enraizamento, a uma ampla mudança civilizacional. Mais do que nunca, também o nosso presente se vê convocado para um repensamento. A pandemia gere-se numa frente sanitária. Mas não de forma exclusiva. Seria um trágico engano não ver que o debate sobre aquilo que nos cura só se resolve na abertura ao debate sobre aquilo que nos salva.