Laboratórios de consolação, por Tolentino Mendonça
A associação do luto às lágrimas é atestada pela etimologia da própria palavra. De facto, luto deriva do verbo latino lugere que significa chorar. Talvez na memória que conservamos dos nossos lutos seja essa recordação, a das lágrimas, a prevalecer, mesmo se elas representam apenas uma espécie de grafla ágil para uma experiência emocional mais vasta, incomensuravelmente mais lenta, que nos faz mergulhar desamparados em alguma coisa que sem apelo percecionamos como perda, como violento esvaziamento que nos estilhaça, como vertiginosa separação. As nossas lágrimas, por mais singulares que nos pareçam, tenham elas a forma que tiverem, são a nossa participação nas lacrimae rerum, nas lágrimas das coisas ou que existem nas coisas, como escreveu Vergílio na "Eneida", abordando os fardos que a morte impõe. Pois nada existe que não chore. Quando choramos, somos nós que choramos, mas é também o planger do mundo, o rumor do seu prantear em nós, o seu choro forçoso diante do pensamento da morte universal. Mas as nossas lágrimas não nos conectam imediatamente a um sentimento fusional. Pelo contrário. Choramos porque o luto nos destaca drasticamente de tudo, nos torna irremediáveis apátridas, cuspidos para fora de órbita, feridos por uma dor irreparável e sem a poder gritar, numa abrasiva solidão que, uma vez deflagrada, não nos larga mais.
O luto precisa de tempo e de elaboração. Tempo paciente e esperançosa elaboração. É sabido como as emoções sufocadas, sobre as quais não se elaborou suficientemente, mais cedo ou mais tarde reclamam o seu direito e, não raro, de uma maneira convulsiva, que compromete a própria saúde psíquica. A resolução do luto é assim um assunto de vida, um longo trabalho interno que requer uma força enorme, que não é imediata, nem óbvia. E que, diga-se a verdade, não encontra sempre uma aliada na sociedade contemporânea, que tendo feito da morte um interdito cultural do qual não se fala, também perdeu competências em relação ao luto. Uma sociedade desritualizada como a nossa demite-se de pensar ferramentas que ajudem os indivíduos a percorrer caminhos de maturação e de sentido para experiências, no fundo, tão comuns. Temos um vocabulário capaz de descrever o que se sente no luto (estado de choque, negação, raiva, culpa, depressão, tristeza...), mas faltam-nos gramáticas e práticas colaborativas que permitam ir mais longe, concentrando-se não tanto na pergunta da partida ("por que é que ele/ela partiu?") quanto na redescoberta do dom que o outro não deixa, mesmo na morte, de representar. Elaborar o luto significa transitar do "sem ele/ela" para um "graças a ele/ ela". A questão que alavanca a viragem é, desse modo, "por que é que ele/ela veio?"
Temos um vocabulário capaz de descrever o que se sente no luto [...] mas faltam-nos gramáticas e práticas colaborativas que permitam ir mais longe, concentrando-se não tanto na pergunta da partida [...] quanto na redescoberta do dom que o outro não deixa, mesmo na morte, de representar.
Mas este trânsito precisa de facilitadores. Sobreviver a um filho que morre um acontecimento indescritível. A monumentalidade plangente da escultura da "Pietà" é disso que fala. O filósofo Edgar Morin, agora centenário, diz ainda hoje que a morte da mãe, ocorrida quando ele tinha a idade de nove anos, foi a sua "Hiroxima interior". Alguém pode imaginar o que isso significa? Por isso, são de valorizar diferentes experiências que começam a surgir e que se agregam em torno ao desejo de ativar laboratórios de consolação. Em Itália, por exemplo, no vale do Casentino, entre Arezzo e Florença, vi uma vez um bosque de amendoeiras que vai sendo plantado por pais que perderam os filhos. O guia explicou me que era o jardim dos filhos perdidos. Mas quando me aproximei, havia uma placa com outro nome: "Jardim da Ressurreição".
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