O que levamos connosco, por Tolentino Mendonça
Estava estes dias a ler os resultados de uma pesquisa, realizada por um antropólogo, sobre os objetos que os migrantes e os refugiados, em viagem para a Europa, trazem consigo. Mesmo quando se escapa com a roupa que se tem no corpo, e em circunstâncias tão dramáticas como aquelas a que hoje assistimos, há sempre uma imagem, um objeto, uma memória material que se mete no bolso. Pus-me a pensar, por exemplo, no meu regresso de Angola, em criança, na ponte aérea de 75. Lembro-me perfeitamente de a minha mãe estar a fazer, na sua máquina de costura, grandes sacos de napa. Não me recordo, porém, o que se meteu lá dentro ou os critérios que presidiram a tal seleção. Acho que removi do consciente essa dor. Assistir a um processo assim violento de redução material (que, obviamente, nunca é só material) é um abalo sísmico de alta intensidade. Mas foi vital encontrar depois aquele pouco que, nos sacos de napa, se conseguiu salvar. Cada história é única e, ao mesmo tempo, igual a todas as outras.
Neste relatório de pesquisa referem-se duas constantes universais: homing e storytelling. A primeira é o "fazer casa", o esforço para dar uma aparência de lar até aos espaços precários por onde os migrantes vão passando: seja uma tenda de campanha, um quarto anónimo, uma morada mínima e provisória. O futuro não se constrói se se perde completamente de vista o passado. Habitar não é, para nenhum ser humano, um verbo neutro: está sempre atravessado por ressonâncias simbólicas e emocionais, por vínculos de cultura que testemunham plasticamente uma identidade. Só assim os ambientes ainda que insuficientes ou hostis - ganham características de um espaço existencial. Há, de facto, objetos que conservam a história da sua aparição na nossa vida e a do seu uso e, nesse sentido, se revestem de uma dimensão consolatória. Precisamos dessa consolação para continuar. A outra categoria diz respeito à necessidade de contar a própria história. Se bem que, com alguns migrantes e refugiados, ocorre o que acontecia já com os sobreviventes dos campos de concentração, no final da Grande Guerra: é tão desmesurado o que têm para contar que sentem medo de não ser acreditados. Mas poder contar a própria história é uma prática de resistência e condição fundamental para iniciar verdadeiramente um percurso de integração. A narrativa biográfica permite aplacar a relação dramática, e tantas vezes trágica, entre a existência individual e a grande história.
O futuro não se constrói se se perde completamente de vista o passado. Habitar não é, para nenhum ser humano, um verbo neutro: está sempre atravessado por ressonâncias simbólicas e emocionais, por vínculos de cultura que testemunham plasticamente uma identidade.
De que se compõe a "bagagem íntima" de migrantes e refugiados? Um crucifixo, uma pagela plastificada, uma Bíblia, um Corão, anéis, pulseiras, amuletos, vestidos tradicionais, camisolas das equipas de futebol, fotos e imagens da família... Tudo junto são uma espécie de cordão umbilical para os sucessivos nascimentos, uma espécie de amarra de socorro, de ponte de corda estendida quando não resta outra possibilidade de caminho. Contudo, o objeto que se tornou hoje mais representativo, em todos os trânsitos, é o smartphone. Ele passou a condensar as funcionalidades mais diversas: telefone e livro de endereços, máquina fotográfica e álbum de recordações, gravador e registo, calendário e atlas... E não só funcionalidades do ponto de vista técnico: também afetivas. A conclusão do autor do estudo é curiosa. Segundo ele, esta "bagagem íntima" não é, afinal, tão diferente daquela que os transeuntes de qualquer cidade transportam para enfrentar as suas deslocações quotidianas. No fundo, é muito parecido àquilo de que todos nos servimos para dar ordem ao caos, para abraçar a solidão e o desconhecido. Mais uma razão para nos tornarmos próximos uns dos outros, pois sabemos o que em cada vida se joga.
[@Expresso 2573 - 20220218]