Que meu grito chegue a ti, por Tolentino Mendonça
A próxima quarta-feira será, de novo, "quarta-feira de cinzas". Recorrência central do calendário cristão, esse dia assinala o início da quaresma, uma estação deliberadamente intensa do ponto de vista espiritual que, em cada ano, prepara o acontecimento da Páscoa. Na liturgia de "quarta-feira de cinzas" somos chamados a reganhar consciência da nossa transitoriedade e a rever em chave crítica, com o desassombro que comporta o confronto com a verdade última, o que vem sendo por nós edificado. Nessa ocasião, é simbolicamente traçado com cinza, na nossa fronte, o sinal da cruz, enquanto a cada um é repetido o refrão retirado do Livro do Génesis: "Memento quia pulvis es, et in pulverem reverteris" ("Recorda que és pó e em pó te tornarás"). A quaresma introduz-nos, assim, numa experiência inequivocamente penitencial, que passa por assumir, sem condescendência nem escamoteamento, as diversas formas de mal que nos habitam. Sem este assumir das insuficiências, das opacidades e dos mecanismos históricos de violência que perpetuámos, sem o reconhecimento nossa responsabilidade nas experiências de mal, sem a aceitação do modo afinal intermitente, superficial e precário com que buscámos o bem, não compreenderemos a necessidade radical de redenção a que a Páscoa de Jesus responde.
Na sua obra "Introdução ao Cristianismo" (1968), Joseph Ratzinger recupera uma história contada por Kierkegaard.
O relato tem como ponto de partida um incêndio num circo ambulante, na Dinamarca. Naquela aflição, o diretor do circo envia à aldeia vizinha o palhaço, vestido como estava para a sua atuação, a buscar auxílio e a prevenir os habitantes do perigo que corriam. Se nada se fizesse, as chamas através dos campos secos alcançariam também a aldeia. O palhaço corre ao povoado e suplica aos aldeões que viessem com urgência salvar o circo. Mas estes interpretam os seus gritos como um sensacional número cómico: riem-se e aplaudem-no com entusiasmo. O palhaço sente-se impotente. Em vão tenta esclarecer que não se trata de um truque teatral, mas de algo de outra natureza, pois o circo está realmente em chamas.
Mas o seu esforço acentua apenas a vontade de rir dos aldeões.
Até que, por fim, o fogo atinge a aldeia, tornando tudo irremediável. Tomando esta parábola, Ratzinger escreve que o mundo de hoje interpreta prevalentemente o cristianismo como um número de circo que parece não ter nenhuma relação nem com o verdadeiro nem com o falso. E que este abstratizar extremo da proposta cristã que literalmente a neutraliza se torna ainda mais dramático quando é corroborado pelos próprios cristãos. Por isso, a quaresma funciona como um antídoto contra a religião desencarnada, que existe na forma, mas não na sua verdade, compromisso e profecia.
"Quarta-Feira de Cinzas" é também o título de um dos mais belos poemas do século XX, assinado por Thomas Stearns Eliot. Nessa composição intensíssima, distribuída por seis secções (onde se escutam amiúde citações de Cavalcanti, de Dante, do Velho Testamento ou do devocionário mariano), o autor fala de uma esperança maior que a da nossa experiência individual em crise, esperança que nos põe em contacto com um horizonte de transcendência, mas nos pede igualmente que iniciemos um caminho de purificação. Esse caminho, porém, não emerge como macerado ou sombrio, garante Eliot. Pelo contrário: a via penitência é um itinerário para a alegria, uma progressão sempre mais clara, um abandono confiante em que a linguagem se torna oração. Como se pode ver na súplica que encerra o poema: “E que meu grito chegue a Ti”.
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