O herbário da infelicidade, por Tolentino Mendonça

Razões para Acreditar 14 março 2022  •  Tempo de Leitura: 5

Um dos projetos da artista francesa Anais Tondeur chama se "Chernobyl Herbarium" e representa as plantas que crescem na chamada "zona de exclusão", aquela porção de território mais ferida pela contaminação radioativa (num raio de mais ou menos 30 quilómetros da central nuclear). O que o trabalho de Tondeur nos ajuda a ver é que as plantas oferecem um termo de ressonância, uma imagem espectral que apavora, pois elas também foram sujeitas ao trauma da explosão all ocorrida em 1986, também elas absorveram as radiações e testemunham um estado de vulnerabilidade perante uma ameaça com aquela magnitude de terror. Comentando as imagens recolhidas pela artista, o filosofo Michael Marder escreve: "O que explodiu em Chernobyl foi mais do que um reator nuclear. A sua vítima final era o futuro do oikos humano... um mundo onde ainda se podia respirar, viver ou simplesmente ser."

 

A totalitária insensibilidade pelo destino real dos seres humanos, a indiferença pela singularidade que jamais deveria ser sacrificável, a substituição dos nomes próprios pela árida retórica da dominação faz desaparecer do horizonte a história.

 

Ora, recordar o herbário de Chernobyl face ao impensável de novo deflagrado é descobrir, de repente, nessa obra um poder simbólico tornado mais extenso, pois é como se recolhesse não só a dor das espécies vegetais mas também o hórrido, o inenarrável sofrimento humano face à sanguinária loucura da guerra. Com razão, o salmo bíblico (S1 103, 15-16) previne que "a existência humana é semelhante à erva; floresce como a flor do campo, que se esboroa quando o vento sopra". Mas nada a esfarela, a reduz, a desfaz, a pulveriza como a guerra. Porque, entre as vítimas a chorar, não estão só o presente ou o passado mas também a ideia de um futuro possível, de um futuro melhor. A totalitária insensibilidade pelo destino real dos seres humanos, a indiferença pela singularidade que jamais deveria ser sacrificável, a substituição dos nomes próprios pela árida retórica da dominação faz desaparecer do horizonte a história. A história continuará, sim, mas não será mais a mesma. É isso que os milhões de sacrificados nos gritam. Esse lancinante cortejo de espoliados em busca de salvaguarda, esbracejando pela sobrevivência, desejando que em qualquer parte ainda se pronuncie para eles a palavra vida. Mesmo calados, é isso que nos gritam. O herbário da guerra é um interminável relato da infelicidade. 

 

As guerras deviam ser sempre contadas do ponto de vista deles, como ensina um poema de Bertolt Brecht, ele próprio obrigado a escapar como refugiado da Alemanha nazi. Foi na cidade dinamarquesa de Svendborg, uma das etapas iniciais do seu longo e atribulado exílio, que escreveu "A guerra que virá". "A guerra que virá/ não é a primeira. Antes dela/ houve outras guerras./ Quando a última terminou/ havia vencedores e vencidos./ Entre os vencidos o povo/ passava fome. Entre os vencedores/ passava fome o povo." Por isso, não se pode mascarar a irrupção trágica da guerra como se fosse apenas uma operação política que, a um dado momento, e por um qualquer cálculo, é considerada necessária.

 

Sábado passado recebi uma mensagem de uma jovem família ucraniana dirigida a uma rede de amigos. Ele engenheiro civil, ela professora, à espera de um bebé e com uma filha de 3 anos. Tiveram de deixar imediatamente a sua casa e ir esconder-se com milhares de pessoas no subterrâneo de uma estação de metro. Há histórias belas de solidariedade que se tecem nessas horas e lugares limite, mas há também, gota a gota, a tortura do medo e da tristeza, o desconforto do bloqueio, a consumição da alma pela incerteza. Imaginemos o que esta família sentiria, que palavras em silêncio trocava entre si, a angústia que lhes pesava e que por muito, muito tempo os acompanhará. Sábado passado recebemos esta mensagem: "Saibam que no dia 5 de março deixamos a cidade de carro, a caminho da fronteira polaca, e passámos, sem que nada na nossa vida o previsse, à condição de refugiados."

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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