Um viajante na noite, por Tolentino Mendonça
“Quero passar sobre a terra de forma escondida como um viajante na noite. Viver na pobreza, na abjeção, no sofrimento, na solidão e no abandono.” São certamente palavras contracorrente estas que Charles de Foucauld pronuncia, que podem inclusive soar à nossa sensibilidade moderna como incompreensíveis, mas que constituem o exato desenho de uma vida e, ao mesmo tempo, o inusitado programa da posteridade espiritual que ele lega ao futuro. Quem é este francês que aspirou tornar-se um “irmão universal” e que se chamava Charles de Foucauld (1858-1916)? Em 1878 ele tem 20 anos: aborrece-se infeliz numa escola militar que escolheu porque lhe parecia o caminho mais fácil; tenta ocultar dos olhos dos outros o coração desenraizado destacando-se em bravatas que, a bem dizer, deveriam ser lidas como bramidos; perdera os pais na infância e acabava de perder o avô; era titular de uma grande fortuna material e de uma incalculável inquietude a que não conseguia dar sentido; deixava-se andar. Os cinco anos que se seguem, já como militar de carreira, prolongam apenas este estado de ânimo, hesitante, desorientado e impreciso.
Até aí, Foucauld ignorava por completo a natureza da fé. A partir desse momento habitua-se a repetir: “Meu Deus, se existes faz com que eu te conheça”
Ao final desse período, sem surpresa, pede para passar à reserva e começa a preparar uma expedição a Marrocos, país então fechado aos europeus. Pela primeira vez aplica-se com todas as forças a um objetivo. Estuda árabe e hebraico, história e geografia. A única hipótese que vê de alcançar Marrocos é disfarçar-se de judeu. Quando o faz, descobre na pele o desprezo a que os judeus argelinos eram votados pelos franceses, e isso constituirá uma marca. Entre 1883-1884 atravessa então Marrocos numa primeira expedição científica, realizada de modo clandestino e em vulnerabilidade extrema. Não faltaram, porém, momentos em que experimentou maravilhado como a hospitalidade é uma lei sagrada entre os muçulmanos. E uma coisa que o impressionará é o modo como vivem a religião, pois encontra pessoas que colocam a adoração a Deus no centro da própria vida, pessoas para quem Deus conta mais do que tudo o resto. Até aí ignorava por completo a natureza da fé. A partir desse momento habitua-se a repetir: “Meu Deus, se existes faz com que eu te conheça.”
Quando regressa a Paris não parece o mesmo. Empenha-se na preparação do relatório da viagem a Marrocos, que lhe valeria uma medalha de ouro da Sociedade de Geografia. Mas sobretudo a questão religiosa não o abandona mais. Em outubro de 1886 dá-se a sua conversão. É conquistado por uma frase muito repetida pelo seu padre espiritual: “Jesus, quando se tornou homem, tomou o último lugar que ninguém lhe poderá tirar.” É esse lugar que Charles de Foucauld agora ambiciona. Torna-se monge trapista, primeiro em França, depois na Síria. Pouco antes de emitir os votos perpétuos participa num velório de um dos vizinhos do mosteiro e descobre que aquelas pessoas viviam ainda mais pobremente do que os monges. Vai então viver para Nazaré, como criado num mosteiro de clarissas e habita numa cabana, pobre entre os pobres. É ordenado padre em 1901 e escolhe ir viver numa zona do deserto do Sara, junto ao povoado de Tamanrasset, entre os tuaregues, sem intenções de proselitismo. Aprende a língua deles, ama as suas expressões culturais e os seus poemas que traduz para francês, escolhe estar ao lado deles não sendo um deles, está ao seu serviço. Para Charles de Foucauld ser cristão é viver misticamente, da forma mais simples, e ser apenas um irmão, um irmãozinho universal. A 1 de dezembro de 1916 é morto por um bando de assaltantes de passagem. Este domingo será canonizado pelo Papa Francisco.
[SEMANÁRIO#2585 - 13/5/22]