Um ministério para as crianças, por Tolentino Mendonça
Quando Maria Montessori (1870-1952) desembarca nos Estados Unidos, no ano de 1913, o jornal “The New York Times” escreveu que chegara “a mulher mais interessante da Europa”. Nessa afirmação desmesurada havia, porém, fundamento. Montessori estava ainda a meio do curso da sua vida, mas trazia já associada a si a aura de visionária social, capaz de revolucionar o pensamento que temos sobre as crianças e sobre o modo de educá-las. E esta aura não provinha apenas dos escritos então publicados (sobretudo a sua obra mais célebre: “O Método da Pedagogia Científica Aplicada à Educação Infantil em Casas de Crianças”) mas também da prática educativa que havia desenvolvido, sobretudo com crianças desfavorecidas ou consideradas, por alguma razão, problemáticas. Toda a obra da pedagoga foi uma desmontagem das ideias feitas e estigmatizantes que impõem às crianças modelos coercivos de educação, defendendo o contrário. Isto é, que a educação não pode privar as crianças de viverem a sua vida de crianças e que esta é tanto mais eficaz quanto se aproxima de uma autoeducação de que os mais novos são os protagonistas. A figura antiga do professor que se consome a impor imobilidade aos alunos para que o escutem a transmitir um repositório de ideias teóricas, sobre as quais de vez em quando ele deixa a giz um traço efémero no quadro, é superada por uma figura diversa: a do mestre-tutor que acompanha paciente e, em muitos momentos, silenciosamente o trabalho dos alunos, numa disciplina que em vez de pessoas imóveis pretende sujeitos ativos, com espírito colaborativo e autónomo. Sujeitos que são criativamente implicados no progressivo desenvolvimento da própria inteligência e emoções.
Toda a obra da pedagoga foi uma desmontagem das ideias feitas que impõem às crianças modelos coercivos de educação, defendendo que esta não pode privá-las de viverem a sua vida de crianças
Maria Montessori, que tinha uma formação em medicina e muita investigação feita no campo da pedopsiquiatria, descreve com palavras duras o contrassenso que diz serem então os típicos espaços escolares: “A sala de aula, na maior parte dos casos, é um lugar esquálido, nu, com uma cor triste nas paredes, com cortinas que ocultam as janelas e impedem aos sentidos qualquer evasão. A finalidade deste tristonho cenário é que a atenção do escolar não seja desviada por outros estímulos e se fixe no professor que fala. Quando estas crianças desenham, devem reproduzir perfeitamente um outro desenho. Quando se movimentam, é para cumprir exatamente um comando que lhes é dado. A personalidade delas é apreciada apenas pela obediência passiva: a educação da sua vontade consiste na metódica renúncia ao querer.” A sua sugestão é que a sala de aula fosse pensada à medida das crianças, do primeiro ao último detalhe, com móveis e objetos em miniatura e material didático que substituísse, ou pelo menos aligeirasse, a necessidade de intervenção permanente dos adultos. Para Montessori, a aprendizagem verdadeira é racional, mas também emocional; ativa a dimensão física e também a espiritual; deve iniciar a criança nos conteúdos ditos escolares, sem deixar de lado o exercício da sua liberdade, das suas escolhas e da sua imaginação. Ela dava o exemplo da resposta que um conhecido poeta deu quando lhe foi pedido que escrevesse um poema por ocasião da morte de um personagem público: “É uma inspiração, nunca uma ocasião, que pode fazer-me escrever uma ode.” Só numa escola que oferece inspiração, numa escola que pensa a sua tarefa como um campo de expansão, a criança floresce de maneira integral.
No ano e no mês em que se celebram os 70 anos da sua morte (maio de 1952) tem-se recordado a reivindicação simbólica que a filósofa da educação apresentava como um sonho: que em cada governo da terra existisse um ministério para a criança.
[SEMANÁRIO#2586 - 20/5/22]