O poema da terra, por Tolentino Mendonça
A literatura portuguesa tem para com a chuva uma incalculável dívida de gratidão. A história é esta: um dos seus grandes criadores passava por um período devastador de depressão e resolveu acabar com a vida. Estava na meia idade, então. Escreveu uma carta para se despedir e saiu de casa com esse propósito. A meio do caminho começou a chover. Instintivamente fugiu a abrigar-se. A chuva não parava. Ele continuava abrigado e assim esteve por longo tempo. Aos poucos tornou-se clara, indisfarçável, sempre mais objetiva a contradição: tinha concluído que já nada valia a pena, havia interiorizado minuciosamente a ideia de pôr fim à vida, organizara todo um plano nesse sentido e, contudo, ali estava ele a proteger-se de uma coisa tão inofensiva como a chuva. Nesse momento, desatou a correr de regresso a casa.
Lembrei-me desta dívida recentemente ao ler a história de um polícia japonês reformado que percorre os penhascos costeiros de Tojimbo salvando vidas com uma conversa que começa por um simples “olá”, um cumprimento que não custa nada. A tese de Yukio Shige — assim se chama o velho polícia — é que se deve olhar para alguém que tenta o suicídio como se, na verdade, fosse um náufrago. Quando o nadador-salvador corre ao seu encontro, aquele é o primeiro a desejar salvar-se: para isso, porém, precisa de quem lhe estenda um ponto de apoio. É isso que faz. As palavras que não se devem dizer nessa ocasião são do tipo: “Coragem, tu vais conseguir, alguém te há de ajudar.” Em vez disso, há que afirmar com convicção: “Se não tens dinheiro, eu dou-te; se não tens um lugar onde ficar, eu arranjo-te. Vou tratar eu dos teus problemas.” E não se trata de um empréstimo, mas de uma dádiva incondicional. Yukio Shige, por exemplo, orgulha-se de manter a sua palavra. Nos primeiros anos, pagou do seu próprio bolso mais de €35 mil. Agora, a sua associação recebe uma subvenção estatal. Propicia às pessoas que socorre um alojamento na zona, para os primeiros tempos, e um trabalho quando possível. Em geral, demoram-se ali umas semanas a refazer-se. Desta maneira, Shige já salvou a vida de mais de 700 pessoas.
A chamada “secularização dos céus”, com a passagem dos rituais religiosos de invocação para os quotidianos relatórios de previsão, não atenuou o impacto interno da chuva sobre a nossa psique
Aos voluntários que patrulham a costa recomenda especial atenção aos que caminham sozinhos e com um rosto apagado. A maior parte das situações acontece entre o entardecer e a meia-noite. E quando o tempo está minimamente bom, pois o polícia humanista enuncia o que pelos vistos é uma regra: “Ninguém vem acabar os próprios dias quando está a chover.” Se for assim, Deus abençoe a chuva.
Roland Barthes escreveu que “nada é mais ideológico de que o tempo que faz”. Pelo menos, desde o século XVII para cá, quando se estabeleceram as primeiras estações meteorológicas em várias cidades europeias, tendo então Florença como centro dessa embrionária rede de observação. Talvez isso tenha condicionado os tiques dos florentinos, que os outros italianos descrevem como meteoropáticos. Mas evidentemente não são apenas os florentinos. Alain Corbin, perito de história social, escreveu uma “Breve História da Chuva”, mostrando como por toda a parte se intensificou essa sensibilidade individual aos fenómenos meteorológicos. Meteoropáticos somos todos. A chamada “secularização dos céus”, com a passagem dos rituais religiosos de invocação para os quotidianos relatórios de previsão, não atenuou o impacto interno da chuva sobre a nossa psique. Não admira, portanto, que artes como a poesia tenham desenvolvido um apurado conhecimento acerca da chuva. Em “Folhas de Erva”, Walt Whitman exprimia-o assim: “Eu sou o poema da terra, disse a voz da chuva./[...] Desço para banhar a aridez, os átomos, as camadas de pó.”
[SEMANÁRIO#2579 - 1/4/22]