A vida que sabe de si, por Tolentino Mendonça
Uma existência livre, dizia o filósofo Baruch Espinosa, é aquela que faz assentar a sua sabedoria não no medo da morte, mas na meditação da vida. É curiosa a deslocação que Espinosa propõe para pensar a liberdade. Na sua opinião a liberdade não significa ter a possibilidade de decidir o que se quer, afirmar o próprio desejo, autodeterminar-se segundo o seu arbítrio, ser responsável pelo curso das próprias ações. A ética e a liberdade não têm sobretudo a ver com a vontade, nem com as ações, certas ou erradas, que dependem de nós, mas sim com o conhecimento e a possibilidade de conhecer. O ser humano é livre na medida em que conhece. Conhece o quê? Conhece aquilo que o move, reconhece donde provém, torna-se consciente do que está na origem das suas ações. Para Espinosa, a ética é aquilo que está a montante e não propriamente o resultado ou o fruto da nossa ação. A ética não é uma conceção da vida, um pensamento ao qual nos devamos conformar, mas a remoção da opacidade que separa o sujeito das ações que desenvolve, assegurando a transparência entre aquilo que fazemos e aquilo que somos. O campo da ética não incide, portanto, sobre o fazer e o agir quanto sobre o ser (aprofundando incessantemente a relação entre o que se é e o que se conhece de si). A ética é, em síntese, a capacidade de reconhecer o que nos move: uma experiência de abandono ou uma presença amorosa; um vazio que gera carência ou uma plenitude; uma força que expande ou um medo que tolhe. Sabendo, naturalmente, que ninguém está isento das paixões tristes — a falta, a necessidade, o medo — que fazem de tudo para obstaculizar em nós o facto de viver. Contra essas — recomendava o filósofo — podemos opor a fortitudo (a fortaleza, a grande firmeza de alma) e a confiança naquela potência que em nós deseja preservar o próprio ser. A vocação dessa potência, forte ou débil que seja, é propagar-se ao infinito.
Este sentimento de eternidade não consiste numa duração contínua. Colhe-se na interrupção da duração, no sentimento de que a vida é atravessada por uma espécie de música que no silêncio faz soar todas as faculdades
Espinosa escreveu o seguinte: “Ninguém pode desejar ser feliz, agir bem e bem viver, se não deseja ao mesmo tempo ser.” A felicidade não é outra coisa que a força de aderir à própria essência. Porém, para tal, precisamos de ampliar ainda as fronteiras do nosso olhar. Se, por exemplo, o conhecimento de que anteriormente falávamos se pode comparar a uma certa capacidade de ver (e, ao mesmo tempo, de tornar visível), o mesmo se diga da felicidade, que é ver-se (e ver todas as coisas) na forma da eternidade (sub specie aeternitatis). Ou dito doutra maneira: sentirmos e experimentarmos que somos eternos. Este sentimento de eternidade não consiste numa duração contínua, num tempo ininterrupto. Colhe-se, sim, na interrupção da duração, no sentimento de que a vida é atravessada por alguma coisa, por uma espécie de música que no silêncio faz soar todas as faculdades, por uma inédita intensidade que nos nutre, por uma alegria que emerge pela pura e simples sensação de estarmos vivos. É isso a felicidade, mesmo quando chega clandestinamente, como naquele conto de Clarice Lispector. A história da rapariga que desejava um livro. Uma amiga prometeu emprestar-lho, mas adiava sempre o empréstimo para o dia seguinte, como se a tivesse escolhido para fazê-la sofrer. E assim continuou por tempo indefinido, até que a mãe pôs cobro àquela tortura: “Você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Como contar o que se seguiu? Clarice fá-lo na primeira pessoa: “Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo... Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade.”
[SEMANÁRIO#2593 - 8/7/22]