Misericórdia, por Tolentino Mendonça
Não é raro que a mulher que dá à luz o escritor se torne depois também, em qualquer momento, mas por um motivo que todos os seres humanos experimentam, uma sua criação. Há, compreensivelmente, uma inteira literatura dedicada à representação da mãe, desde os ajustes de contas por tudo o que o amor maternal não foi (penso no texto belo e terrível de Irène Némirovsky, “A Inimiga”, 1928, que convoca em duelo a mulher fútil e indiferente que foi a sua mãe) até os reencontros sem fim que a vida e a morte permitem com esse amor, que, mesmo com ambivalências e imperfeições, primeiro nos revelou a nós próprios. Somos, de facto, e a literatura demonstra-o, “esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos”. Mas não deixa de ser um exercício difícil para um criador transformar em ficção essa figura arquitetural por excelência, conseguir aprofundar esse retrato, sem omitir nada, sem esconder as cicatrizes ou a dor, arriscando contar a força luminosa e a doçura desse incomparável amor. É disso que parte Lídia Jorge para o extraordinário romance que acaba de publicar (“Misericórdia”, Edições D. Quixote, 2022).
Falar da mãe é tocar alguma coisa ardentemente intransmissível, mas que permite aceder a um património que todos podemos reconhecer nosso. Abeirar-se da mãe é referir-se à arqueologia do ser, ao que tem de inexplicável a matéria viva, ao seu segredo ramificado e ao esplendor que se torna provisão. É refletir por dentro como essas flores femininas são grandes barcos em espiral que congeminam a viagem, se tornam para nós componentes do universo, coletes de salvação de espaço a espaço, áureos e frágeis vocábulos de uma língua que não se assujeita à impostura. A maestria de Lídia Jorge traça círculos visíveis inesquecíveis, mostra os momentos magnéticos que nos costuram, narra na primeira pessoa a mãe que lateja, revela sem censuras como uma mãe dói e como essa dor constitui um dos elogios mais poderosos à vida. Apresenta em simetria no romance duas mães, a sua e Lilimunde, a jovem emigrante brasileira, que encostadas à parede pelo abandono dos outros, decidem, no entanto, levar a gravidez por diante. “Não quero misturar o nome da minha filha com o pesadelo da noite, quero que ela fique associada às coisas belas da vida.” E, assim, escolhem seguir em frente.
Se há tema removido ou destratado pela história do pensamento ocidental é o da misericórdia, praticamente esquecido no léxico filosófico ou emergindo nele de forma lateral
Que o romance de Lídia Jorge se chame “Misericórdia” e que esta categoria ética seja afinal a protagonista da narração deriva desse dom primordial, dessa dádiva inalcançável nua que uma mãe oferece ao filho. A misericórdia significa ter no lugar coração um coração e, nesse sentido, todas as mães são o ícone da mater misericordiae. Mas Lídia Jorge observa com sagacidade e deixa o aviso: “Misterioso é o sentimento da misericórdia, não tem hora marcada para entrar ou sair do ser humano.”
Dedicar um romance à misericórdia é, para quem quiser ver, um ato de coragem civil. A misericórdia tanto está presente como ausente da vida. Na verdade, se há tema removido ou destratado pela história do pensamento ocidental é o da misericórdia, praticamente esquecido no léxico filosófico ou emergindo nele de forma lateral. Não há propriamente nas nossas sociedades uma educação em vista da misericórdia, nem esta alcançou a força necessária para emergir como paradigma de construção social, como fator político efetivamente decisivo, como consensual prática e hermenêutica do humano. Corremos o risco de nos tornarmos, sempre em grau mais avassalador, analfabetos em relação à misericórdia. Ora, é contra esse analfabetismo que este importante livro se levanta.
[SEMANÁRIO#2609 - 28/10/22]