A regra, por Tolentino Mendonça
Na última semana deste mês têm início as comemorações do VIII centenário da aprovação da regra de São Francisco. O Papa Honório III aprová-la-ia com a bula “Solet annuere”, de 29 de novembro de 1223. É um marco epocal que vai, inclusive, para lá do espaço confessional e crente. De facto, o impacto da intuição do Poverello de Assis modificou substancialmente não apenas uma compreensão religiosa, mas também a visão política e cultural do mundo. Que o seu protagonista seja uma periférica figura poética e mística como a de Francisco, aquele “bobo de Deus” (para citar a designação que Roberto Rossellini escolhe para o filme que lhe dedica) obriga a repensar os critérios de habilitação à liderança das grandes transformações históricas. Francisco é certamente um protagonista improvável e mais improvável ainda é o caminho a que ele se propõe.
Enquanto a riqueza divide, a renúncia às várias modalidades de posse reforça a possibilidade do amor. Este é certamente um dos tópicos ainda hoje fraturantes do franciscanismo
O medievalista André Vauchez, um dos autores fundamentais no campo da história da espiritualidade cristã, sintetiza alguns aspetos onde a originalidade de Francisco é tão desconcertante quanto poderosamente seminal. Primeiro: ele estava convencido de que Deus lhe pedia uma nova forma de vida religiosa que não cabia nas codificações anteriores. Essa nova forma ele explicava-a como a “via da simplicidade”, uma espontânea e literal aproximação ao evangelho como estilo de existência. Segundo: trata-se de um projeto coletivo, onde os seus membros vêm chamados irmãos, e o objetivo é criar um tipo de existência caracterizada por comportamentos alternativos em relação ao contexto social, relançando relações de fraternidade com todos, sem distinção. A atenção às outras criaturas (animais, plantas...) fará parte da nova experiência emergente. Terceiro: numa sociedade senhoril em que a aspiração era aceder à categoria de dominus, os frades, por inspiração de Francisco, escolhem para si a denominação de “Menores”: quanto mais se é minor (pequeno, humilde, distante da ambição de poder), mais se é “irmão” dos outros. De facto, a meta individual não será a autossuficiência, mas uma prática de comunhão. Quarto e último: numa época em expansão económica, profundamente ligada à ideia de lucro, a fraternidade franciscana propõe um mundo às avessas. Operando um processo de autoespoliação, os frades renunciam a qualquer forma de propriedade, justificando que o que menos possui mais se deixa possuir por Deus. Imaginam assim uma espécie de economia baseada na gratuidade (o dom) e na redistribuição ou restituição voluntária (a esmola). Enquanto a riqueza divide, a renúncia às várias modalidades de posse reforça a possibilidade do amor. Este é certamente um dos tópicos ainda hoje fraturantes do franciscanismo.
Vauchez defende que São Francisco não coloca em processo a propriedade como depois o fará Proudhon no século XIX. A sua escolha tem uma natureza eminentemente espiritual. No entanto, o santo traduz o seu pensamento com gestos inequívocos: um dia recusou uma cela que lhe estava preparada, porque um irmão a definiu como “a tua cela”; quando encontrava alguém mais pobre do que ele exprimia publicamente a sua vergonha; na “Legenda Maior” diz-se que, desde o início da vida religiosa até à sua morte, os seus bens foram o hábito, uma corda à cintura e as ceroulas; por fim, pediu para morrer estendido no chão e nu. O filósofo Giorgio Agamben recorda que é Francisco a colocar no centro do debate civilizacional a altissima paupertas não tanto, segundo ele, como uma prática ascética, mas como conceção diversa do uso dos bens e do seu possesso. Escolhendo não possuir coisa alguma, os franciscanos escolhem viver e testemunhar uma relação com o não-apropriável.
[SEMANÁRIO#2613 - 25/11/22]