O que nos dá o outono, por Tolentino Mendonça
Dá que pensar que seja o outono, precisamente o outono, a oferecer-nos tamanha amplidão. Que seja esta estação quebradiça, em que o frio se instala e a luz como que parte (pelo menos aquela luz unívoca, aquele clarão total que pulsou a nosso lado o inteiro estio), a tomar-nos pela mão e a introduzir-nos num matizado enredo de cores afinal tão vivas. Que seja esta estação frágil, ameaçada pelo vento, esta espécie de sazonal vertigem, esta música volante para acompanhar visíveis e invisíveis despedidas a apresentar-nos o que pode ser ainda a intensidade, a sensorialidade e o fulgor. T. S. Eliot recordava, com razão, que no nosso fim está o nosso início. Em múltiplos sentidos devemos encarar o outono como um território propício a iniciações e aprendizagens que ainda não havíamos realizado.
O outono recorda-nos que há uma inescusável relação entre as cores e a vida. O mundo vem a nós através do alfabeto (cromático, sensorial, espiritual) das cores, e mesmo quando cedemos à tentação de descrever a vida de forma monocromática, como se a realidade se adequasse a um simplista branco ou preto, não podemos eludir a evidência de que até esse branco e preto são cores. As cores não só nos ensinam a olhar a vida com maior atenção, mas ampliam as competências de um outro sentido: o da escuta. De facto, não é apenas o olhar que se exercita num percurso de maturação distinguindo as cores, os seus tons, a lógica ou não-lógica dos seus cambiantes e transformações. Deveríamos encostar cada cor ao nosso ouvido e aceitar o encontro com a história que ali se conta.
Há uma sociologia que se pode construir a partir das cores e, ao mesmo tempo, uma espécie de história privada, de memoir íntimo cheio de variações. Recuando à época clássica, por exemplo, é curioso constatar como as palavras que se utilizavam para indicar as cores não coincidem com as nossas. Em Homero, o mar nunca é azul (é esbranquiçado, cor de vinho ou roxo). Se a palavra azul não existe, teria existido a visão dessa cor? – perguntamo-nos. A verdade é que também cada um de nós fala do azul e das outras cores a seu modo, misturando vivências, ligando-se a emoções, viajando para lá e para cá na surpresa do que se manifesta diante de nós.
Em múltiplos sentidos devemos encarar o outono como um território propício a iniciações e aprendizagens que ainda não havíamos realizado
Mas regressemos à afirmação inicial. Que seja o outono a abrir-nos o mundo das cores, quando porventura já esperamos dele (e da vida) tão pouco, dá efetivamente que pensar. Um dos mais belos testamentos é aquele encontrado entre os papéis da pintora Vieira da Silva. Um testamento representa, certamente, o ensaio de uma despedida, mas não só. Desafia-nos à compreensão de que existe uma herança e de que todos, no fundo, somos herdeiros de um bem, pois a vida é uma economia do dom. Dizia Vieira da Silva: “Eu lego aos meus amigos um azul cerúleo para voar alto. Um azul cobalto para a felicidade. Um azul ultramarino para estimular o espírito. Um vermelhão para o sangue circular alegremente. Um verde musgo para apaziguar os nervos. Um amarelo ouro: riqueza. Um violeta cobalto para o sonho. Um garança para deixar ouvir o violoncelo. Um amarelo barife: ficção científica e brilho; resplendor. Um ocre amarelo para aceitar a terra. Um verde Veronese para a memória da primavera. Um anil para poder afinar o espírito com a tempestade. Um laranja para exercitar a visão de um limoeiro ao longe. Um amarelo limão para o encanto. Um branco puro: pureza. Terra de siena natural: a transmutação do ouro. Um preto sumptuoso para ver Ticiano. Um terra de sombra natural para aceitar melhor a melancolia negra. Um terra de Siena queimada para o sentimento de duração.”
[SEMANÁRIO#2612 - 18/11/22]