Falar de gerações, por Tolentino Mendonça

Razões para Acreditar 30 janeiro 2023  •  Tempo de Leitura: 5

filósofo Jean-Luc Nancy levanta uma questão que faz pensar: a de saber se, num mundo em clara mutação como é o nosso, ainda é possível falar de gerações. Para se falar de gerações é necessário que a geração presente se sinta gerada pela anterior, se considere devedora desse engendramento, se assuma como herdeira de um dinamismo que, mesmo na sucessão, mantém uma fundamental linha de continuidade. Ora, num mundo que se autorrepresenta, até de forma exasperada, a partir do paradigma da rutura e da disjunção, algo nos é sem dúvida subtraído quanto à possibilidade de nos experimentarmos como uma geração. Para Nancy, uma das razões do mal-estar e desorientação da civilização atual é que “as gerações não se sabem nem se sentem geradas, mas sim destituídas, abandonadas, ou ainda largadas à beira de uma estrada [...], numa região confusa e desprovida de pistas e sinais”. E esta desorientação ou vertigem atinge hoje todos: não só os que têm 20 anos mas também os de 80. É como se a crise dos encadeamentos entre gerações nos desligasse uns dos outros, nos tornasse mais incertos sobre aquilo que somos, mais hesitantes quanto à duração e aos modos de transmitir e herdar o mundo. Como naquele verso de René Char, escrito durante a Segunda Guerra Mundial, dizemos: “A nossa herança não foi antecedida por qualquer testamento.” De facto, na contemporaneidade passou a faltar o testamento, isto é, uma explicitação do processo de transmitir.

 

Uma das juristas e intelectuais portuguesas que mais tem colocado o olhar no futuro é Maria da Glória Garcia. Um dos seus textos recentes reflete precisamente sobre a Ética Geracional (o texto vem inserido na coletânea coletiva “Temas de Ética. Reflexões e Desafios”, Edição Principia, 2022). Até há poucas décadas, esta era uma expressão desconhecida. Só quando se autonomizou o espaço das ações das gerações presentes em relação às gerações vindouras se tornou necessário encontrar uma designação. Tinha assim início a elaboração de uma ética geracional. Maria da Glória Garcia dá conta de que, de forma crescente, se tem vindo a consolidar uma sensibilidade para a salvaguarda dos interesses das gerações futuras, e dá o exemplo de Israel, que já criou, inclusive, instituições de representação desse tipo de direitos. Direitos que vinculam um sentido de responsabilidade face aos valores que garantem a humanidade do Ser Humano, a sua abertura ao futuro e a sua inscrição num mundo, casa comum onde coexistimos com tantas outras formas de vida, cujo equilíbrio deve ser preservado. O importante raciocínio jurídico, que a autora desenvolve, constitui um ponto fundamental, pois a ética geracional não se concretiza sem a efetivação de uma justiça entre gerações.

 

No cuidado está a resposta às questões que chegam do futuro. Pois o cuidado fortalecerá a comunidade que nos gerou, a casa comum onde vivemos e a esperança de todos

 

Um dos temas fortes nos discursos que o Papa Francisco pronunciou, na visita aos povos primeiros do Canadá, foi também este. Em particular, no encontro com os jovens e com os anciãos, realizado em Iqaluit, elogiou as suas culturas, que souberam, apesar das atrocidades sofridas, transmitir de geração em geração bens essenciais, formas genuínas de fraternidade e o cuidado pelo ambiente. E sintetizou nestas palavras a sua mensagem: “Cuidar, transmitir os cuidados: é a isto, em particular, que são chamados os jovens, apoiados pelo exemplo dos idosos! Cuidar da terra, cuidar das pessoas, cuidar da história.” No cuidado está a resposta às questões que chegam do futuro. Pois o cuidado fortalecerá a comunidade que nos gerou, a casa comum onde vivemos e a esperança de todos. Mas para isso, como exorta o Papa, precisamos de orientar, desde já, o navegador da existência para uma meta grande.

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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