Conheces a montanha?, por Tolentino Mendonça
Para quem quiser ver, a ciência inicia-nos na complexidade e na beleza da vida. E fá-lo não só nos seus pontos de chegada, mas também no modo como ela própria se elabora. Por exemplo, ao ouvir contar ao físico Carlo Rovelli a extraordinária aventura que conduziu à formulação da teoria quântica — que ele define como uma das maiores conquistas científicas da Humanidade e que está por detrás de todo o surto tecnológico que tem vindo a reconfigurar o nosso modo de viver — há uma palavra na qual me fixo: a palavra relação. Primeiro: a física quântica superou a ideia da velha física de que o mundo deveria ser descrito partindo das substâncias e dos seus atributos para motivar-nos a pensar a realidade em termos de relações. É uma perspetiva nova de entender o mundo, mais subtil e dialógica do que a do materialismo simplista que estudava partículas no espaço. A chave torna-se a palavra relação. Segundo: A própria construção da teoria quântica nasce não apenas de um cérebro, mas da colaboração entre cientistas de gerações e geografias diferentes. Niels Bohr, um físico renomado de Copenhaga, que se apaixonara pelos mistérios do átomo, e que vivia no encalce de uma lei que explicasse a sua aparente incongruência. O jovem Werner Heisenberg que aos 23 anos pega nesse problema e genialmente consegue uma solução. Mas que temendo que tudo aquilo fosse ainda uma fantasia, envia o seu trabalho a Max Born, da universidade de Göttingen, na Alemanha, com o seguinte bilhete de acompanhamento: “Escrevi um trabalho louco e não tenho a coragem de mandá-lo para uma revista.” Born que, por sua vez, intui o passo histórico dado por aquele jovem aturdido e, com a ajuda do seu assistente, Pascual Jordan, trabalha intensamente para colocar em ordem a estrutura formal da nova física. Terceiro: a teoria quântica põe em relação a física e os outros campos do saber, nomeadamente a filosofia. O mundo é uma rede de informações recíprocas. A física empirista que pretendia sozinha esclarecer a substância fundamental da matéria baseava-se, no fundo, numa conceção demasiado ingénua de matéria, sem ter em conta a riqueza desconcertante dos processos, das relações e das interações que nos impele a pensar o mundo de uma forma mais articulada. Quarto: Aceitando o princípio da relação, a ciência não tem de pôr de lado a dimensão de mistério. Escreve Carlo Rovelli no seu livro mais recente, “Helgoland”, Adelphi, 2020: “O frágil véu que é a nossa organização mental é pouco mais do que um instrumento insuficiente para navegar através dos mistérios infinitos deste caleidoscópio mágico inundado de luz, no qual, maravilhados, nos encontramos a existir, e a que chamamos o nosso mundo.”
Sem uma chave dialógica não se entende nada fora nem dentro de nós. Se tomarmos também o ser humano, sem mais, ele aparecerá como uma coisa tão intrigante e longínqua como a lua
É verdade: sem uma chave dialógica não se entende nada fora nem dentro de nós. Se tomarmos também o ser humano, sem mais, ele aparecerá como uma coisa tão intrigante e longínqua como a Lua. É quando colocamos o ser humano em relação que ele se avizinha e revela a sua natureza. Por isso, talvez seja uma coincidência sem qualquer relevância, ou não, o seguinte facto: quando o jovem Heisenberg descobriu na solidão da ilha do Helgoland, no Mar do Norte, as primeiras bases da física quântica, o que ele fazia nos intervalos do seu trabalho científico era decorar poemas de Goethe, onde se insiste na ideia de relação. Poemas como este: “Conheces o país onde os limões florescem/ E laranjas de ouro acendem a folhagem?// [...] Conheces a montanha e a vereda de bruma,/ A alimária que busca a enevoada senda?/ Nas grutas ainda vive o dragão da legenda,/ A rocha cai em ponta e à roda a onda espuma,/ Conheces a montanha?”
[SEMANÁRIO#2498 - 12/9/20]