A possibilidade de conversar, por Tolentino Mendonça
“Uma questão difícil de tratar.” É assim que o historiador e crítico de arte norte-americano James Elkins vê a relação entre criação artística e religião na contemporaneidade. O seu ensaio mais conhecido sobre o tema tem um título que diz tudo: “On the Strange Place of Religion in Contemporary Art” (2004). E estranho lugar porquê? Certamente as razões culturais são antigas e ligam-se ao debate que funda a modernidade: a emergência da autonomia do espaço secular face ao religioso; a reivindicação da liberdade individual reinterpretando a estrita normatividade do ethos comunitário; o desmantelamento de uma visão social que tinha no referente religioso o seu elemento decisivo de definição, etc. Contudo, revisitar as razões históricas que estiveram na origem da atual fratura não nos isenta do dever de pensar, sem preconceitos, o presente, pois os pressupostos da relação arte e religião não são já os mesmos.
Já não vivemos numa era de fé homogénea e inquestionável, mas também não estamos já no tempo em que o ateísmo parecia reclamar uma espécie de superioridade cultural
A religião não possui hoje a centralidade hegemónica que fazia dela o sistema dominante de sentido contra o qual a arte se posicionou, no passado, em termos críticos. Pelo contrário, não raro, ela surge, no regime hodierno, remetida para uma lateralidade submersa, uma quase clandestinidade cultural que cabe (também) à arte hoje resgatar. No impactante retrato traçado pelo filósofo Charles Taylor sobre a contemporaneidade do ponto de vista da crença e da descrença (“A Secular Age”, 2017), um dado fundamental que emerge é que o horizonte se alterou e todos os modos de crença — e inclusive de descrença — são percecionados como igualmente questionáveis e frágeis. Já não vivemos numa era de fé homogénea e inquestionável — se é que alguma vez ela pôde ser descrita assim — mas também não estamos já no tempo em que o ateísmo parecia reclamar uma espécie de superioridade cultural, como no período do iluminismo e na sua longa posteridade. Há por isso um mundo de relações a redescobrir, também do ponto de vista estético e artístico. Como escreve James Elkins, “se a religião faz parte da vida e está intimamente associada a tudo o que pensamos e fazemos, é estranho que não encontre um lugar no debate sobre a arte contemporânea”. São, por isso, necessárias formas serenas de conversação e debate, porventura livres dos esquematismos, fantasmas e constrangimentos anteriores, ativando sim aquilo que Charles Taylor chama “políticas de reconhecimento”. De facto, no contexto do multiculturalismo que caracteriza as sociedades abertas, a sobrevivência das diversas comunidades culturais depende também do seu reconhecimento público. Ora, tal passa por privilegiar o exercício dialógico, a troca narrativa, o encontro entre atores não-coincidentes, mas capazes de uma auscultação mútua. E temos exemplos de excelência em Portugal. Penso no site da Pastoral da Cultura (www.snpcultura.org), no trabalho cultural em torno às capelas do Seminário de Braga ou no dinamismo esperançoso que os jesuítas estão a imprimir (e a permitir) na “Brotéria”.
Quando, há uns meses, o editor Nuno Higino me convidou para escrever um texto para um livro com desenhos de Álvaro Siza que abordam o universo religioso cristão, respondi-lhe que mais interessante seria promover uma conversa com Siza sobre arte, arquitetura e espiritualidade. O título do volume que acaba de ser editado, “A Questão Sobre Deus É o Não Saber Explicar”, é uma frase de Álvaro Siza que pode ser lida em vários modos, mas nunca como um ponto final. O “não saber” é o reservatório inesgotável da curiosidade e da pergunta. E enquanto formos capazes de fazer perguntas o nosso caminho projetar-nos-á sempre mais longe.