Resiliência, por Tolentino Mendonça
Resiliência é uma palavra pedida de empréstimo à física. Tem a ver com a resistência que os materiais opõem a uma pressão que sofram, não se deixando estilhaçar nesse impacto, mas mantendo intacta a sua unidade. Este termo entrou no nosso vocabulário corrente pela porta da psicologia, e passou a descrever a capacidade de reagir a experiências traumáticas, recorrendo à mobilização dos recursos interiores para uma reorganização de nós próprios. Assim, à maneira dos materiais que não quebram ou deformam, a resiliência sublinha em momentos-chave, em momentos especialmente pesados como o que estamos coletivamente a viver, a importância das velhas virtudes que temos de aprender a tratar por tu: a força de ânimo, a constância, a teimosia, a humildade de recomeçar do zero, a aceitação dos sacrifícios necessários ou o esforço requerido para manter aceso o entusiasmo, que é uma forma de declarar o amor pela vida.
A esse propósito, o escritor norte-americano Mason Currey tem desenvolvido uma linha de pesquisa sobre os rituais quotidianos de mulheres e homens (pensadores, cientistas, líderes sociais, escritores...) que são sobretudo recordados pelo lado extraordinário das suas existências. Mas a verdade é que, mesmo os génios que colocamos num pedestal, tiveram de enfrentar com resiliência os desacertos, exigências e reviravoltas das várias estações. Mason Currey começou por publicar essas anotações num blogue e, que eu saiba, tem editadas já duas recolhas. A mais recente concentra-se sobre a tarefa concreta de viver assumida (com fragilidade e firmeza, com sofrimento e risco) por grandes mulheres. O resultado (“Daily Rituals. Women at Work”, 2019) é impressionante. Quando sentirmos vontade de nos queixar do quinhão que nos cabe gerir é bom colocarmos os olhos naquilo que foi a vida delas.
Mesmo os génios que colocamos num pedestal tiveram de enfrentar com resiliência os desacertos, exigências e reviravoltas das várias estações
Viver é gastar-se. A história da cientista Marie Curie é, nesse sentido, um monumento à resiliência. O caminho que a levou ao Prémio Nobel foi de trabalho duríssimo, desenvolvido em condições mais do que precárias, sem certezas nenhumas, a um ritmo desesperantemente lento, e que lhe solicitava todos os recursos e forças que tinha. Numa carta à irmã escreve: “A nossa vida é sempre igual. Trabalhamos muito... Por outro lado, sentimo-nos bem assim.” A cineasta Agnès Varda recebeu, em 1974, um subsídio da televisão alemã para girar um filme. Mas o filho mais pequeno tinha apenas dois anos e ela não podia ausentar-se. Tomou esta decisão: usaria um cabo elétrico de 80 metros, que ficaria ligado à corrente elétrica da sua casa. E teria de filmar aonde chegasse o cabo, renunciando a outras distâncias. Agnès Varda realizou assim o documentário intitulado “Daguerréotypes”, sobre a vida quotidiana dos comerciantes da Rue Daguerre, que era a sua. Acerca da radicalidade de entrega que o trabalho artístico (mas certamente não apenas o trabalho artístico) pede, escreveu Susan Sontag: “Kafka fantasiava poder trabalhar numa semicave de um edifício qualquer, onde duas vezes por dia lhe deixariam a comida à porta. Nunca se está suficientemente em solidão para escrever. Penso que escrever é como viajar num balão, numa nave espacial, num submarino, num armário; é como viajar para outro lugar, onde não exista ninguém, para aí verdadeiramente nos concentrarmos e ouvirmos a nossa voz.” Talvez quem se comova com o delicado minimalismo da pintora Agnes Martin ignore que ela trabalhou, por muitos anos, num atelier sem eletricidade, nem água corrente, e dormia numa rulote. Ela, porém, defendia-se assim: “Sem a consciência da beleza, da inocência e da felicidade não se fazem obras de arte.” Temos tanto a aprender sobre o que signifique a resiliência.
[SEMANÁRIO#2518 - 29/1/21]