Um dia esta dor vai nos ser útil, por Tolentino Mendonça
Não saímos ainda da pandemia, a verdade é essa. E como não a podemos remover da história concreta deste nosso presente com a facilidade que desejaríamos, a tentação atual é a de a removermos dentro de nós, ensaiando uma espécie de negação. A realidade é o que é, sabemo-lo bem, mas passamos a interpretá-la de uma forma mais aceitável para nós. As imagens do formigueiro humano que desagua nas praias (se não numa zona do país, noutra) ou se estende prazenteiramente pelas esplanadas mostra essa necessidade irreprimível de consolação. Não se trata de negar os factos ou de distorcer os números. Trata-se sim de uma operação que pode parecer de pura sobrevivência interior: expostos por um tempo longo a uma dura prova, a dada altura preferimos simplesmente bloquear o impacto da situação externa no nosso mundo emocional. É um mecanismo recorrente de distanciamento do real, que permite um certo alívio. Não queremos ouvir falar do problema ou tentamos reorientar a ameaça que ele representa, convencendo-nos que os grupos de risco são sempre os outros. Em parte foi isso que aconteceu quando se dizia que as pessoas de risco eram unicamente os idosos ou que existiam regiões mais imunes do que outras.
As experiências dolorosas podem tornar-se oportunidades para redescobrir que a vulnerabilidade também nos ensina coisas de que precisamos. Mas é necessário que não enxotemos depressa demais essas experiências para debaixo do tapete. Mais do que fugas precisamos de resiliência, conscientes da gravidade desta hora. Mais do que nos precipitarmos numa mudança de assunto (porque coletivamente chegamos a uma exaustão psíquica provocada pelo mesmo martelar monotemático em todas as frentes), seria importante elaborá-lo em profundidade, e isso só acontece se tivermos a coragem de o fazer emergir. Mais do que nos escondermos uns dos outros, apostados numa gestão individualista da questão, torna-se indispensável que nos encontremos num discurso de comunidade.
Expostos por um tempo longo a uma dura prova, a dada altura preferimos simplesmente bloquear o impacto da situação externa no nosso mundo emocional
A pandemia não tem só vítimas diretas. A quantidade de vítimas secundárias não cessa de crescer numa crise que não é apenas sanitária, mas também económica e social. É cada vez mais manifesto que a pandemia nos empobreceu terrivelmente. A fome está de volta à Europa e insinua-se como um fantasma junto de pessoas e famílias que, há apenas seis meses, não se pensariam jamais em situação semelhante. Os dados dos bancos alimentares, das Cáritas e das muitas associações que estão no terreno a distribuir bens de primeira necessidade, são clamorosos. Ouvi recentemente aos responsáveis de uma delas o seguinte testemunho: “As nossas previsões iniciais é que este socorro alimentar seria necessário até finais de abril ou até maio no máximo, e que os números começariam pouco a pouco a baixar. Ora, estamos em pleno verão e os números continuam a aumentar, o que nos deixa muito preocupados com o que virá aí no próximo outono.” Cresceram não só os indicadores de pobreza relativa mas também os de pobreza absoluta. Jovens e idosos, desempregados e trabalhadores precários, nacionais e imigrantes deixaram de poder fazer face às suas despesas essenciais.
Por isso, a pergunta mais urgente não é quanto tempo precisamos (um ano, dois anos, quatro anos?) para voltar à situação em que estávamos. A pergunta mais premente é: como é que esta dor nos pode ser útil? E a resposta é inequívoca: se redescobrirmos o sentido do próximo. Se este aluvião nos ensinar a nadar no campo da atenção solidária à vida frágil, tal como se declina em nós e nos outros.
[SEMANÁRIO#2489 - 11/7/20]