Lidar com a repetição, por Tolentino Mendonça

Razões para Acreditar 14 abril 2021  •  Tempo de Leitura: 5

A primeira vaga do vírus encontrou-nos impreparados. A segunda também. Entre uma etapa e outra houve certamente quem vigiasse, quem mantivesse o estado de alerta ou até antecipasse o cenário em que agora de novo entramos. Mas o desejo de um regresso à normalidade era tanto que aqueles que puderam removeram a memória do período anterior. O negacionismo não é só o dos outros e tem múltiplas linguagens e faces dentro de nós. Agarrámo-nos ao verão como a um reencontro com a liberdade, festejando-a como uma prova de vida, convencendo-nos que o mais difícil havia passado, exorcizando nos dias amplos daqueles meses e nas suas despreocupadas esplanadas a escuridão que, afinal não há tanto tempo, tínhamos experimentado.

 

Vivemos a primeira vaga pandémica como um trauma. Viveremos a segunda também assim. A primeira chegou-nos como o desabar de uma agressão e descobrimo-nos, a essa áspera luz, mais vulneráveis do que alguma vez o pensámos. A atual recidiva agrava o sentimento de que estamos impotentes e sitiados, porque ao peso da pandemia propriamente dito soma-se agora o luto das nossas ilusões, a fragilização trazida pelo cansaço e, aqui e ali, também uma descontrolada explosão social de raiva. No fundo, trata-se de lidar com a repetição, essa categoria com a qual nos precisamos reconciliar e da qual temos muito a aprender.

 

Enquanto a recordação nos faz, de certa maneira, voltar atrás, regressar ao passado como o havíamos habitado, a repetição impele-nos a dar um passo em frente

 

Quando se lê, por exemplo, Kierkegaard perde-se o medo à categoria de repetição. De facto, ele vai encontrar nesta categoria uma saída para o impasse a que se tinha chegado na filosofia antiga entre os que sustinham, como Parménides, que qualquer mutação no mundo físico deve ser considerada ilusória, pois a realidade do ser é imutável, homogénea e imóvel, e os que defendiam, como Heraclito, que a essência do mundo é movimento e contínuo devir. Kierkegaard identifica na repetição a possibilidade de explicar melhor a vida do que estas hipóteses da imobilidade permanente e da novidade absoluta constante. E, ele próprio pergunta: “Que seria, ao fim de contas, a vida se não ocorresse nenhuma repetição? Quem desejaria ser apenas um tabuleiro no qual o tempo a cada instante escreve uma frase nova ou versa somente o historial de um passado?” Para o filósofo dinamarquês, a repetição é a chave que explica a nossa existência. Ele deixa claro, porém, que a repetição não pode ser vista como um mero retorno do passado. Na verdade, mesmo quando nos desconcerta, ela é também uma possibilidade de transcendência, na medida em que nos conduz a novos estádios de aperfeiçoamento e progresso. Enquanto a recordação nos faz, de certa maneira, voltar atrás, regressar ao passado como o havíamos habitado, a repetição impele-nos a dar um passo em frente. Por isso, enfrentar a repetição está entre os deveres éticos e espirituais mais sérios.

 

Sabemos, contudo, que a experiência da repetição nem sempre é indolor. Como ajudou a ver Freud, também acontece que a repetição se relacione com alguma coisa que não ficou resolvida lá atrás no tempo, alguma coisa cuja solução nos escapou e esse falhanço se torna um obstáculo pronto a pôr em causa o que somos. É como se essa vivência primeira que interpretamos como fracasso persistisse depois como uma deficiência, uma dívida ou uma perda que não chegou a ser reparada e que agora nos aprisiona dentro do seu circuito cego através da “compulsão da repetição”. O caminho paciente a trilhar passará pela reelaboração desta espécie de sofrimento original, destapando-o e integrando-o, num processo necessariamente lento. Mas não é raro que a esperança nos coloque do lado da lentidão.

 

[SEMANÁRIO#2506 - 7/11/2020]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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