O (DES)APARECIMENTO DA VIRGEM
A questão da fé tem uma natureza mística inalienável, com a qual porventura precisemos de reconciliar-nos
Agora que se voltou a falar da necessidade de fixar os acontecimentos relativos à génese de Fátima numa linguagem teológica mais precisa, substituindo porventura o termo “aparição” por aquele de “visão”, recordei-me de um poema de Murilo Mendes, onde ele defende ainda um terceiro posicionamento sobre o assunto. No seu entender, “o maior milagre/ é o do desaparecimento da Virgem”. E explica-o num memorável poema dedicado à história de Lourdes, mas que pode perfeitamente ser aplicado à narrativa de Fátima. E diz isto: “Quem me dera estar em Lourdes/ Quando a Virgem desapareceu. /A “implacável” consciência do abandono/ A solidão “infinita” /O desespero “absoluto”/ E a saudade d’Ela me salvariam para sempre”.
De facto, há um dado que não se pode esquecer e que a posição de Murilo Mendes saudavelmente acentua: qualquer que seja a nomenclatura a adotar, ela deve ser inscrita no horizonte da mística e a mística é uma experiência nua. Grande parte das desconfianças e resistências que o termo “mística” desperta em muita gente (fora, mas também dentro do espaço católico) reside na evidência de que, em seu nome, tem sido promovido todo o tipo de evanescências, representações e escapismos. No entanto, a questão da fé tem uma natureza mística inalienável, com a qual porventura precisemos de reconciliar-nos. A experiência crente supõe uma confiança, não uma garantia. A fé não possui o objeto que a funda, porque ele é alter, é sempre outro. Como explica o autor da Carta aos Hebreus (Heb. 11,1): “A fé é o fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não veem”. E, na mesma linha, vai o comentário de Michel de Certeau, que estudou amplamente o território da mística: “Avizinhando-se daquele que amam, os crentes experimentam sempre, de uma forma ou de outra, o sentimento do vazio: abraçam uma sombra. Acreditam encontrá-lo se avançarem ao seu encontro, mas Ele não está lá. Procuram em toda a parte, perscrutam em cada detalhe onde Ele possa estar. Mas Ele não está em parte alguma”. Isto porquê? Porque os místicos sabem que Deus se dá ausentando-se. Entre Deus e nós há um espaço vazio. Nós movemo-nos nesse espaço. O essencial está além, só na pobreza da nossa carne e do nosso tempo, que são também carne e tempo de Deus, podemos entrevê-lo. Podemos, por isso, entender como uma oração o verso de Sophia de Mello Breyner Andresen, que começa assim: “Creio na nudez da minha vida.” Por difícil e turva que esta se possa revelar, não há via de maior transparência para compreendermos o que possa ser uma viagem espiritual.
O místico não se deixa dominar por nenhuma etapa ou representação. A sua espiritualidade desenvolve-se numa posição ambivalente: é ao mesmo tempo encarnada e comprometida, mas genuinamente desprendida e livre. Seguro daquilo que lhe falta, o místico percebe que cada lugar por onde passa é ainda provisório e que a demanda continua. Não pode ser só isto. E essa espécie de excesso que é o seu desejo, fá-lo exceder, atravessar e perder as imagens e os lugares. Mística há de sempre ser sinónimo de liberdade. Essa liberdade imensa, de tudo, de todos e de si, que se aprofunda na aceitação de uma interdependência onde é tão fácil fixar uma oposição: entre o micro e o macro, entre o próximo e o distante, entre o de dentro e o de fora, a atividade e o repouso, o silêncio e a palavra, a imobilidade e a dança, o agora e o depois. Como recorda Certeau, o místico “não habita em parte alguma, ele é habitado”. E amarra-se, assim, não ao futuro, mas ao invisível. Quer dizer: ao ainda não (visível).